Travessia indígena
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro — No sábado (25), uma embarcação partiu do porto da Praça XV, no Rio de Janeiro, conduzida por Ailton Krenak e Mateus Aleluia. A travessia, intitulada Águamãe e promovida pela Associação Selvagem em parceria com o Museu do Amanhã, reuniu vozes indígenas para revisitar a Baía de Guanabara — território onde se entrelaçam as origens do Brasil, a devastação ambiental e a busca por um novo pacto entre natureza e sociedade.

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A iniciativa, parte da Temporada França-Brasil 2025, foi mais do que um ato cultural. Tratou-se de uma releitura simbólica do próprio projeto de país.

Em entrevista à Agência Brasil, a jornalista e artista Renata Tupinambá afirmou que “a Guanabara é mãe de muitos povos” e que o retorno do manto Tupinambá — peça ancestral resgatada de um museu europeu — reforça a continuidade de uma história apagada pela colonização. Para ela, as águas da baía são um útero simbólico, onde o Brasil nasceu e ainda tenta se reconhecer.

O artista e líder espiritual Carlos Papá Mirim Poty, também em declaração à Agência Brasil, destacou que muitos nomes do cotidiano carioca — como Ipanema, Jacarepaguá e até “carioca” — são heranças linguísticas indígenas. “Os cariocas não sabem o significado do que falam”, disse, ao lembrar que recuperar essas origens é uma forma de resistência cultural.

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Durante a navegação, a discussão ultrapassou o campo da memória. Papá chamou atenção para a dimensão ecológica do gesto. Segundo ele, a redescoberta recente de praias próprias para banho, como a do Flamengo, mostra que o ambiente reage quando há cuidado.

“Quando o ser humano entende que não é o único morador, nasce o respeito”, afirmou em entrevista ao mesmo veículo.

A educadora Cristine Takuá, do povo Maxakali, acrescentou que os humanos têm muito a aprender com os demais seres vivos. “O coletivo das formigas e das abelhas é mais ético do que séculos de civilização humana”, observou, em fala registrada pela Agência Brasil.

Sua reflexão aponta para o esgotamento de uma lógica de progresso que ignora a interdependência ecológica — um tema central na agenda da COP30, que ocorrerá em novembro, em Belém.

Travessia indígena
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Com 337 quilômetros quadrados e 40 ilhas, a Baía de Guanabara resume a contradição brasileira: um santuário natural transformado em corredor industrial. Vazamentos de óleo, como o de 2000 — quando 1,3 milhão de litros de combustível se espalharam por 40 km² — evidenciam o custo ambiental de um modelo baseado em exploração.

Para a curadora Anna Dantes, cofundadora da Associação Selvagem, ouvida pela Agência Brasil, o caso da Guanabara dialoga com os dilemas atuais da Margem Equatorial, onde se discute a exploração de petróleo.

“A crise da Baía é fruto de um sistema colonial que segue em curso”, afirmou.

A reflexão desloca o debate ambiental do campo técnico para o político: o desafio de conciliar soberania energética, preservação ambiental e justiça social.

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A antropóloga Nastassja Martin, também citada pela Agência Brasil, lembrou que enfrentar as mudanças climáticas exige ouvir quem vive em relação direta com os ecossistemas.

“As mudanças climáticas não são teoria, são sobrevivência”, disse.

Sua fala reforça a noção de que a sustentabilidade precisa ser construída de baixo para cima, com protagonismo das comunidades que convivem com os efeitos da crise climática.

Ailton Krenak encerrou a travessia com uma reflexão sobre o modo de existir. Citando trecho de seu livro Um rio um pássaro, publicado pela Companhia das Letras, ele recordou que “receber a vida e viver já é maravilhoso”.

A frase ressoou como síntese de uma filosofia que busca reconciliar o humano com o tempo da Terra — um convite, talvez, para o Brasil repensar seu próprio ritmo de desenvolvimento.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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