Transfobia
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Rio de Janeiro (RJ) — Em um país em que pessoas trans enfrentam violência antes mesmo de abrir a porta de um consultório, o câncer costuma ser descoberto tarde demais. Médicos e organizações de direitos humanos alertam que o medo do tratamento humilhante afasta essa população da prevenção, transformando a transfobia institucional em um fator de risco tão grave quanto a própria doença.

continua depois da publicidade

A lógica é conhecida por quem vive na pele a exclusão: para pessoas trans, o simples ato de marcar uma consulta pode significar enfrentar olhares, piadas, erros de gênero e constrangimentos que corroem a dignidade. Ao evitar esses ambientes, exames essenciais — que deveriam ser parte da rotina — são adiados até que o corpo já esteja em alerta máximo.

Não se trata de um conjunto de casos isolados. A dificuldade de acesso ao rastreio oncológico se repete em todo o país. Por décadas, o sistema de saúde foi desenhado para corpos cisgêneros — e segue reproduzindo essa lógica.

Homens trans que mantêm tecido mamário ou útero são direcionados para espaços estruturados exclusivamente para mulheres cis; mulheres trans, por sua vez, encontram barreiras para monitorar a próstata, órgão que não deixa de existir só porque sua identidade não corresponde aos moldes binários.

continua depois da publicidade

A experiência do analista de mídias sociais Erick Venceslau, compartilhada em entrevista à Geledés – Instituto da Mulher Negra, é emblemática desse cenário. Ele descobriu um nódulo no peito e adiou o atendimento por medo do tratamento hostil.

Quando finalmente procurou ajuda, o tumor já havia crescido de forma acelerada. Seu diagnóstico veio acompanhado de uma constatação dolorosa: a transfobia o colocou em risco antes de qualquer célula cancerígena.

A mastologista Maria Julia Calas, também ouvida pela Geledés, destaca que o preconceito pode surgir logo na entrada dos serviços de atendimento, criando um ciclo perverso: quem é maltratado não volta — e quem não volta adoece mais.

Transfobia
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A oncologia avançou rapidamente nos últimos anos, mas a inclusão da população trans não acompanhou o ritmo. Faltam dados epidemiológicos consistentes, protocolos claros e diretrizes específicas para o cuidado oncológico de pessoas trans.

A ausência de pesquisas e treinamento adequados faz com que decisões médicas sejam tomadas na incerteza — e que pacientes, como Erick, ouçam respostas como “não sei” quando perguntam se tratamentos hormonais podem seguir após a cirurgia.

Esse vazio científico não é acaso: ele expressa quem o sistema considera digno de cuidado. Quando determinados corpos não entram nas pesquisas, também não entram nas políticas públicas. A invisibilidade não é figura de linguagem — é uma estratégia que autoriza o tumor a crescer no silêncio que o preconceito mantém.

Leia Mais

Mesmo com iniciativas pontuais de atualização de protocolos e pressão de movimentos sociais, o desafio segue o mesmo: garantir que pessoas trans não precisem negociar sua identidade para acessar um direito básico. Saúde não pode ser condicionada a aprovação social.

Enquanto a prevenção depender de atravessar recepções hostis, olhares de suspeita e erros de tratamento por desconhecimento ou preconceito, o sistema estará mostrando que é preciso suportar violência para sobreviver. Nesse ambiente, a transfobia age como parte da própria doença, acelerando seu curso.

Romper com esse padrão é urgente. A exclusão que afasta pessoas trans dos serviços de saúde também abrevia suas vidas. Quando o diagnóstico chega tarde por medo da humilhação, o que mata não é apenas o tumor — é a estrutura que ainda escolhe quem merece viver com dignidade.

IA Dinheiro

IA Dinheiro

A Redação IA Dinheiro produz reportagens interpretativas e mantém cobertura contínua em Economia, Política, Sociedade, Mundo e Sustentabilidade.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.

Ainda não há comentários nesta matéria.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima