Rio de Janeiro (RJ) — Em um país em que pessoas trans enfrentam violência antes mesmo de abrir a porta de um consultório, o câncer costuma ser descoberto tarde demais. Médicos e organizações de direitos humanos alertam que o medo do tratamento humilhante afasta essa população da prevenção, transformando a transfobia institucional em um fator de risco tão grave quanto a própria doença.
A lógica é conhecida por quem vive na pele a exclusão: para pessoas trans, o simples ato de marcar uma consulta pode significar enfrentar olhares, piadas, erros de gênero e constrangimentos que corroem a dignidade. Ao evitar esses ambientes, exames essenciais — que deveriam ser parte da rotina — são adiados até que o corpo já esteja em alerta máximo.
Não se trata de um conjunto de casos isolados. A dificuldade de acesso ao rastreio oncológico se repete em todo o país. Por décadas, o sistema de saúde foi desenhado para corpos cisgêneros — e segue reproduzindo essa lógica.
Homens trans que mantêm tecido mamário ou útero são direcionados para espaços estruturados exclusivamente para mulheres cis; mulheres trans, por sua vez, encontram barreiras para monitorar a próstata, órgão que não deixa de existir só porque sua identidade não corresponde aos moldes binários.
A experiência do analista de mídias sociais Erick Venceslau, compartilhada em entrevista à Geledés – Instituto da Mulher Negra, é emblemática desse cenário. Ele descobriu um nódulo no peito e adiou o atendimento por medo do tratamento hostil.
Quando finalmente procurou ajuda, o tumor já havia crescido de forma acelerada. Seu diagnóstico veio acompanhado de uma constatação dolorosa: a transfobia o colocou em risco antes de qualquer célula cancerígena.
A mastologista Maria Julia Calas, também ouvida pela Geledés, destaca que o preconceito pode surgir logo na entrada dos serviços de atendimento, criando um ciclo perverso: quem é maltratado não volta — e quem não volta adoece mais.

A oncologia avançou rapidamente nos últimos anos, mas a inclusão da população trans não acompanhou o ritmo. Faltam dados epidemiológicos consistentes, protocolos claros e diretrizes específicas para o cuidado oncológico de pessoas trans.
A ausência de pesquisas e treinamento adequados faz com que decisões médicas sejam tomadas na incerteza — e que pacientes, como Erick, ouçam respostas como “não sei” quando perguntam se tratamentos hormonais podem seguir após a cirurgia.
Esse vazio científico não é acaso: ele expressa quem o sistema considera digno de cuidado. Quando determinados corpos não entram nas pesquisas, também não entram nas políticas públicas. A invisibilidade não é figura de linguagem — é uma estratégia que autoriza o tumor a crescer no silêncio que o preconceito mantém.
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Mesmo com iniciativas pontuais de atualização de protocolos e pressão de movimentos sociais, o desafio segue o mesmo: garantir que pessoas trans não precisem negociar sua identidade para acessar um direito básico. Saúde não pode ser condicionada a aprovação social.
Enquanto a prevenção depender de atravessar recepções hostis, olhares de suspeita e erros de tratamento por desconhecimento ou preconceito, o sistema estará mostrando que é preciso suportar violência para sobreviver. Nesse ambiente, a transfobia age como parte da própria doença, acelerando seu curso.
Romper com esse padrão é urgente. A exclusão que afasta pessoas trans dos serviços de saúde também abrevia suas vidas. Quando o diagnóstico chega tarde por medo da humilhação, o que mata não é apenas o tumor — é a estrutura que ainda escolhe quem merece viver com dignidade.



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