Mobilidade urbana

Brasília – O governo federal voltou a estudar uma proposta de tarifa zero no transporte público urbano, medida que há anos circula nos bastidores da política brasileira e, desta vez, ganha contornos técnicos no Ministério da Fazenda. A ideia é avaliar se há espaço para construir um modelo fiscal capaz de sustentar o transporte gratuito sem romper as metas de responsabilidade orçamentária.

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A discussão reacende um dilema histórico: o transporte como direito social ou como serviço subsidiado. O que está em jogo, segundo técnicos da própria equipe econômica, não é apenas a gratuidade da passagem, mas a redefinição de um sistema que hoje se mantém à base de repasses emergenciais, renúncias fiscais e contratos deficitários.

“Há uma demanda legítima por inclusão, mas o risco é criar uma despesa permanente sem fonte estável de custeio”, afirma um assessor da Fazenda ouvido sob condição de anonimato.

Segundo ele, o estudo não mira uma implementação imediata, mas um marco de financiamento metropolitano — algo que envolva União, estados e municípios na mesma equação.

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O custo da gratuidade

A Confederação Nacional do Transporte (CNT) estima que o modelo de gratuidade integral custaria cerca de 90 bilhões de reais por ano, o equivalente a 0,8% do PIB. O número inclui ônibus, trens e metrôs. Outras projeções, como as do Ipea, trabalham com valores entre 65 e 70 bilhões, dependendo da abrangência e do volume de passageiros.

A diferença entre os cálculos reflete a falta de um padrão nacional de financiamento. Para Rafael Calabria, pesquisador do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), “sem governança integrada e uma fonte estável de custeio, a conta nunca vai fechar”.

Mobilidade urbana

A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), que reúne as concessionárias do setor, defende que a tarifa zero pode ser socialmente positiva, desde que acompanhada de contratos baseados em qualidade de serviço e não apenas no número de passageiros.

“A tarifa zero aumenta o número de usuários e promove acessibilidade, mas precisa de fonte permanente de custeio”, disse o diretor executivo da entidade, Francisco Christovam, em entrevista recente à Agência Brasil.

Segundo levantamento da NTU, 154 municípios brasileiros já adotam alguma forma de tarifa zero, sendo 127 com gratuidade universal. O crescimento é expressivo: antes de 2020, eram pouco mais de 30. Mas a maioria dessas cidades tem menos de 100 mil habitantes e sistemas de transporte com custo médio muito inferior ao das metrópoles.

As cidades que testam o futuro

Em Maricá (RJ), o programa municipal “Vermelhinhos” tornou-se vitrine da política. O sistema, financiado integralmente pela prefeitura, realiza cerca de 115 mil viagens diárias. Desde a ampliação da frota em 2021, o número de passageiros cresceu 144%, segundo dados oficiais.

Experiências semelhantes foram registradas em Caucaia (CE), onde o volume mensal de passageiros saltou de meio milhão para 2,4 milhões em dois anos. Em Itaboraí (RJ) e Cascavel (PR), os prefeitos apostam no impacto econômico indireto: o comércio local aqueceu, e o número de vagas formais aumentou após a adoção da medida.

Esses resultados chamam atenção de urbanistas e economistas. “A tarifa zero tem um efeito de curto prazo muito nítido sobre a economia local, especialmente nas cidades pequenas”, avalia Clarisse Linke, diretora do ITDP Brasil, instituto de pesquisa em mobilidade sustentável.

“Mas isso não significa que o modelo seja replicável em larga escala. Quanto maior a cidade, maior o desafio de equilíbrio fiscal e de qualidade do serviço.”, conclui.

A experiência internacional

A ideia de transporte gratuito não é exclusiva do Brasil. Tallinn, capital da Estônia, foi a primeira cidade europeia a adotar tarifa zero para moradores, em 2013.

Pesquisas conduzidas pelos urbanistas Oded Cats, Triin Reimal e Yusak Susilo apontaram aumento na mobilidade das classes mais baixas, mas efeito limitado sobre a redução do uso de automóveis.

Mobilidade urbana

Em Luxemburgo, o transporte é gratuito desde 2020. Um relatório do governo local mostrou que a medida diminuiu em cerca de 8% as emissões de CO₂ no transporte rodoviário, mas que a mudança mais relevante foi simbólica: reafirmar o transporte público como bem comum.

Já em Dunkerque, na França, onde a gratuidade foi implementada em 2018, estudos registraram crescimento no fluxo de passageiros e dinamização do comércio local.

Esses modelos têm algo em comum: todos dependem de fontes fiscais dedicadas. Na França, o sistema é financiado pelo Versement Mobilité, um tributo sobre a folha de empresas com mais de 11 funcionários.

Em Tallinn, parte da arrecadação vem de impostos locais e de repasses do governo central. É o tipo de desenho que ainda não existe no Brasil.

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O impasse fiscal

A proposta brasileira enfrenta uma muralha orçamentária. O novo arcabouço fiscal, aprovado em 2023, limita o crescimento das despesas públicas à variação da inflação somada a 70% da alta da receita. Isso significa que qualquer gasto permanente precisa vir acompanhado de aumento equivalente de arrecadação.

“O desafio é que a tarifa zero não é um gasto pontual. É despesa corrente, contínua e politicamente sensível”, diz a economista Laura Carvalho, professora da USP. “Sem um fundo estruturado, o risco é repetir o que já ocorreu em áreas como saúde e educação: a União define direitos e empurra a conta para estados e municípios.”

Prefeitos têm a mesma preocupação. Representantes da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) defendem que, se a tarifa zero virar política nacional, é preciso criar um Fundo Nacional de Mobilidade Sustentável, com fontes vinculadas a combustíveis fósseis, estacionamentos e aplicativos de transporte. A ideia é fazer com que o transporte individual financie o coletivo — um princípio adotado em parte da Europa.

Mobilidade e desigualdade

No Brasil, onde a tarifa média de ônibus consome até 12% da renda das famílias mais pobres, a gratuidade é mais que uma política de transporte: é um instrumento de inclusão social. Estudos do Instituto Escolhas e do Ipea associam a ampliação da mobilidade ao aumento de participação política e acesso ao emprego formal.

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A socióloga Maria Alice Setubal, do Cenpec, defende que a mobilidade urbana é um vetor de cidadania. “Quando o deslocamento deixa de ser uma barreira, você altera o mapa da cidade”, afirma. “As pessoas passam a ter acesso a oportunidades, lazer, educação e serviços públicos antes inalcançáveis.”

Mesmo assim, especialistas insistem que a tarifa zero deve ser encarada como um meio, não um fim. Sem reestruturação da rede, renovação de frota e integração tarifária, a gratuidade corre o risco de se tornar um benefício vazio, incapaz de reduzir congestionamentos ou emissões.

Um projeto em disputa

Na Esplanada, o estudo em andamento na Fazenda é descrito como pré-político. O objetivo é construir uma base de dados consolidada para discutir o tema em 2026, ano eleitoral. O Planalto enxerga na tarifa zero um ativo simbólico poderoso, capaz de dialogar com o discurso de inclusão e sustentabilidade.

Nos bastidores, técnicos alertam que o debate só será responsável se vier acompanhado de uma reforma mais ampla no modelo de financiamento urbano — algo que envolva transporte, habitação e planejamento territorial.

Por enquanto, o país observa. Enquanto pequenas cidades viram laboratórios, o governo tenta entender se é possível transformar o passe livre em política de Estado sem abrir um rombo fiscal. A resposta, por ora, ainda está presa no trânsito entre o ideal e a planilha.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e política internacional, dedicado a interpretar como o poder e os mercados influenciam o Brasil e o mundo.

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