Jujuy (Argentina) — A expansão acelerada da mineração de lítio no norte argentino, impulsionada pela reforma constitucional da província de Jujuy, vem desalojando comunidades indígenas e ampliando conflitos territoriais, num momento em que o “ouro branco” se torna peça central da transição energética e símbolo das desigualdades que ela pode intensificar.
A região andina que forma o chamado “triângulo do lítio”, entre Argentina, Bolívia e Chile, concentra mais da metade das reservas conhecidas desse metal indispensável para baterias de veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia.
Porém, por trás da corrida global por tecnologias mais limpas, populações originárias enfrentam uma nova onda de expulsão e violência estatal. A argentina Maryta de Humahuaca, do povo Humahuaca, é uma das vozes mais atingidas por esse processo. Após sofrer ameaças constantes, foi obrigada a abandonar o território onde viveu toda a vida.
O epicentro do conflito é a província de Jujuy, que, em 2023, aprovou uma reforma constitucional acelerada e sem consulta prévia às comunidades tradicionais. A nova legislação flexibilizou mecanismos de exploração mineral, priorizou a proteção da propriedade privada e abriu brechas para despejos sumários.
Para os povos indígenas, significou a perda de garantias territoriais, especialmente em áreas cobiçadas por mineradoras internacionais. Maryta denuncia não apenas a violência estatal, mas o ambiente político hostil intensificado por discursos antindígenas do então candidato Javier Milei.
Desde então, protestos tomaram Jujuy e ecoaram em Buenos Aires. Lideranças reivindicaram diálogo com o governo federal, mas a ascensão de Milei ao poder sepultou qualquer expectativa de negociação.
Perseguida, Maryta saiu da Argentina e percorreu cidades brasileiras até chegar a Belém, onde participa da COP30 para denunciar o que descreve como um processo sistemático de despossessão.
Seu relato, mais do que denúncia individual, reflete o drama de diversos povos que têm suas águas, territórios e modos de vida colocados em risco por operações de alto impacto ambiental.

A província de Jujuy abriga o maior percentual de população indígena da Argentina — mais de 50 mil pessoas entre Humahuaca, Kolla, Quechua, Atacama, Guaraní e outros grupos. A sobreposição entre salares estratégicos e territórios ancestrais cria tensões permanentes.
A extração de lítio exige bombear salmouras subterrâneas, processo que consome entre 1,9 e 2,1 milhões de litros de água por tonelada produzida. Num ambiente árido, a retirada massiva de água altera ecossistemas inteiros e ameaça a sobrevivência de comunidades que dependem diretamente dessas fontes.
O testemunho de Elizabeth del Valle Mamani, do povo Atacameño, expõe a dimensão ambiental dessa corrida mineral. Em Catamarca, sua comunidade convive há quase três décadas com os impactos da exploração da empresa Livent, hoje incorporada à gigante Río Tinto.
O vale do Rio Trapiche — essencial para pastagens e agricultura local — secou ao longo de seis quilômetros. É considerado pelos indígenas um “rio assassinado”, expressão que condensa tanto a morte física do curso d’água quanto o trauma social provocado pela degradação.
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Mesmo após esse impacto, a empresa construiu, em 2017, um aqueduto de 30 km para drenar o Rio Los Patos. Somente em 2024 o Tribunal de Justiça de Catamarca suspendeu a exploração dessa fonte, determinando estudos de impacto ambiental. Eli Mamani agora utiliza a COP30 para buscar apoio internacional e pressionar por uma decisão definitiva que impeça novos danos.
Os conflitos também revelam contradições profundas da transição energética global. O lítio tornou-se símbolo de uma economia mais limpa, mas os custos socioambientais recaem sobre regiões que historicamente foram tratadas como zonas de sacrifício.
Assim como aconteceu com prata, estanho, cobre e outros minerais estratégicos, os povos indígenas denunciam que continuam pagando a conta do desenvolvimento imposto de fora.
Maryta resume essa contradição: comunidades não rejeitam a transição energética — sabem que a crise climática exige mudanças estruturais. O que contestam é um modelo que reproduz velhas assimetrias sob o rótulo de economia verde.
Reivindicam consulta prévia, autonomia territorial e respeito aos bens naturais que sustentam suas culturas. Na cosmovisão andina, água e terra não são recursos: são entidades vivas que mantêm o equilíbrio da comunidade. A destruição dessas bases compromete não só o presente, mas todo o ciclo geracional.
O que emerge é uma disputa maior: quem será protegido e quem pagará o preço da nova revolução energética. Sem garantias institucionais, os povos indígenas seguem entre a defesa da própria vida e a pressão de um mercado global que acelera mais rápido do que os direitos conseguem acompanhar.
A corrida pelo “ouro branco” redefine prioridades econômicas, mas também expõe a urgência de modelos que combinem desenvolvimento com justiça ambiental — princípio essencial para que a transição energética não repita os erros do passado.











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