Social-democracia
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

Ao final da ditadura militar, o Brasil precisava reinventar o Estado. O autoritarismo deixara instituições enfraquecidas, desigualdades históricas e uma população descrente de promessas de desenvolvimento. Nesse cenário, um conceito político europeu começou a circular entre intelectuais e parlamentares: a social-democracia, um projeto que buscava conciliar liberdade, crescimento e justiça social.

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Mais do que uma ideologia, representava um caminho de equilíbrio, uma tentativa de unir mercado e proteção social, capitalismo e bem-estar.

Inspirada nos modelos que reconstruíram a Europa após a Segunda Guerra Mundial, a social-democracia brasileira se apresentava como o alicerce de um país que desejava combinar democracia política e justiça social.

O problema é que, mais de trinta anos depois, esse projeto continua preso à teoria.

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O que é social-democracia?

A social-democracia nasceu no início do século XX, quando parte do movimento socialista europeu abandonou a ideia de revolução e passou a defender mudanças graduais dentro do sistema capitalista. A aposta era usar o poder público para corrigir as distorções do mercado, proteger trabalhadores e garantir padrões mínimos de bem-estar à população.

Após 1945, essa visão deu origem ao Estado de Bem-Estar Social em países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Alemanha.

Ali, a combinação de altos impostos, sindicatos fortes e serviços públicos universais produziu sociedades com baixa desigualdade e alto índice de desenvolvimento humano.

O Estado passou a financiar educação, saúde, aposentadoria e políticas de habitação com base em um pacto social amplo e estável. Esse modelo não eliminou o capitalismo, mas o domesticou.

Criou um sistema em que o lucro continuava sendo motor da economia, porém dentro de regras de redistribuição e proteção. A democracia política, sustentada por partidos trabalhistas e sociais-democratas, dava legitimidade a esse arranjo.

O ideal importado da Europa

No Brasil, a social-democracia chegou como inspiração durante o processo constituinte de 1987-1988. A sociedade civil pressionava por direitos universais e o país tentava se afastar do legado autoritário e concentrador do regime militar.

A Constituição de 1988 refletiu essa influência ao estabelecer a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade e a universalização da saúde, da educação e da seguridade social. O Sistema Único de Saúde (SUS), a Previdência pública e o seguro-desemprego são frutos diretos desse espírito.

Ulysses Guimarães - 35 anos da Constituição brasileira
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O texto constitucional desenhou um Estado promotor de direitos, comprometido com o combate às desigualdades e com a valorização do trabalho.

Mas havia uma diferença essencial em relação à Europa: o Brasil não possuía a base econômica e institucional necessária para sustentar um sistema de bem-estar.

O país saía de uma crise da dívida externa, com inflação descontrolada e arrecadação concentrada no consumo, não na renda. Faltava, portanto, o pilar que sustentou a social-democracia nórdica: um pacto fiscal progressivo e duradouro.

O Estado que prometeu mais do que podia cumprir

Os anos 1990 marcaram o início das contradições do projeto social-democrata brasileiro. O país adotou reformas de orientação liberal: privatizações, abertura comercial e ajuste fiscal. 

O PSDB, partido que traz a social-democracia no nome, apostou na estabilização monetária e no controle da inflação como pré-condições para o desenvolvimento.

Embora a estabilidade tenha sido alcançada, o Estado reduziu seu papel como indutor da economia e ampliou a dependência de políticas focalizadas, em vez de universais.

O resultado foi um paradoxo: a Constituição previa um Estado de bem-estar, mas o orçamento público passou a ser administrado sob lógica de austeridade.

Enquanto os modelos europeus ampliavam investimentos sociais em momentos de crise, o Brasil fazia o inverso — cortava gastos e adiava reformas estruturais.

A década seguinte, já sob governos de centro-esquerda, resgatou parte do papel estatal por meio de programas de transferência de renda, crédito e inclusão produtiva.

Lula
Foto: Ricardo Stuckert/PR

Políticas como o Bolsa Família e a expansão do ensino técnico e superior aproximaram o país de alguns objetivos sociais-democratas, mas sem alterar as engrenagens que produzem desigualdade.

A estrutura tributária continuou regressiva: quem ganha menos paga proporcionalmente mais, e a renda do capital segue pouco tributada. O Estado distribui recursos na base, mas mantém privilégios no topo.

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O contraste com o modelo nórdico

Nos países escandinavos, a social-democracia consolidou-se a partir de consensos de longo prazo entre capital e trabalho.

O sistema tributário progressivo, os sindicatos fortes e o investimento massivo em educação criaram um círculo virtuoso de produtividade e redistribuição. Esses países não apenas cresceram — tornaram-se mais igualitários, sem abrir mão da competitividade.

No Brasil, o pacto social nunca se completou. A fragmentação política e a dependência de coalizões frágeis transformaram o planejamento de longo prazo em exceção. O resultado é um Estado que promete universalidade, mas opera com orçamento contingenciado e políticas intermitentes.

O sonho do bem-estar se converteu em arquitetura institucional sem base fiscal, um conjunto de direitos escritos em pedra, mas sustentados por areia.

Um projeto que começou e não acabou

Mesmo incompleto, o ideário social-democrata deixou marcas profundas na vida brasileira. A ampliação dos direitos civis, o fortalecimento das políticas sociais e a percepção de que o Estado tem responsabilidade sobre a desigualdade são legados diretos desse período.

O SUS, por exemplo, tornou-se um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo e sustentou o país em crises sanitárias. A Previdência Social e a assistência aos mais pobres ajudaram a reduzir a extrema pobreza em momentos críticos.

Mas, ao contrário do que ocorreu nos países escandinavos, onde a social-democracia se institucionalizou como projeto nacional, no Brasil ela permaneceu como ideal de transição — um meio caminho entre o autoritarismo e o liberalismo, sem ter se transformado em eixo permanente de Estado.

A ausência de uma política tributária redistributiva, de uma reforma administrativa que priorize eficiência e de um consenso sobre o papel do Estado mantém o projeto suspenso.

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O sentido de uma promessa

A social-democracia brasileira é, antes de tudo, uma tentativa de conciliar democracia política com justiça social. Seu valor histórico não está apenas nos resultados concretos, mas no horizonte que ela abriu para o país.

A Constituição de 1988 traduziu esse ideal em lei, e parte significativa da sociedade ainda se orienta por ele — mesmo quando a prática política o nega. No fundo, o Brasil vive desde então entre a igualdade prometida e o pragmatismo fiscal que a adia indefinidamente.

Dessa forma, o Estado social-democrata nunca se consolidou, mas continua servindo de referência moral e política — um lembrete de que liberdade sem equidade gera democracia frágil, e que justiça social sem sustentabilidade econômica é apenas retórica.

A social-democracia guiou a transição democrática, inspirou a Constituição e moldou parte do imaginário coletivo brasileiro.

Mas ficou presa ao meio do caminho entre o sonho europeu e a realidade desigual do país, entre o desejo de um Estado de bem-estar e a incapacidade de financiá-lo.

Mais do que um modelo político, tornou-se o reflexo do que o Brasil poderia ter sido, se as promessas de 1988 tivessem encontrado o chão da realidade econômica.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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