O choque prolongado das sanções contra Moscou, somado à reconfiguração das cadeias de petróleo e gás, está redesenhando o tabuleiro energético global. A Rússia redireciona barris e consolida parcerias em energia — inclusive nuclear —, o Oriente Médio calibra produção para ampliar poder de barganha e a Europa corre para blindar sua transição climática com novas regras de comércio de carbono. No curto prazo, isso se traduz em oscilações de preço e oferta; no médio, em realinhamentos de poder que tendem a perdurar.
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Do choque das sanções ao desvio das rotas
A ofensiva de drones ucranianos sobre refinarias russas e a decisão de Moscou de restringir exportações de diesel e prorrogar o bloqueio à gasolina reintroduziram o “prêmio geopolítico” ao preço do barril.
Na semana, Brent e WTI engataram a maior alta desde junho, um lembrete de que o risco de oferta segue vivo mesmo com demanda global heterogênea. O alívio parcial pode vir da retomada do fluxo do Curdistão iraquiano via Turquia, após dois anos de paralisação — adição relevante num mercado que reage a qualquer sinal de afrouxamento de oferta.
Com o Ocidente restringindo a receita de Moscou, a Rússia aprofundou o desvio de vendas para a Ásia. A Índia — apesar de novas tarifas norte-americanas — indicou que continuará comprando petróleo russo, atraída por descontos e pela lógica de segurança energética.
A movimentação é parte de um realinhamento mais amplo: setores inteiros do comércio de combustíveis estão sendo redirecionados, com reflexos até na Turquia, onde as importações de óleo russo arrefeceram sob pressão política e regulatória.
O Oriente Médio como pivô de preço e poder
No Golfo, Arábia Saudita, Emirados e parceiros da Opep+ vêm alternando cortes e aumentos graduais para preservar preço e participação de mercado. O grupo já aprovou elevações de produção em 2025, enquanto mantém “camadas” de cortes até 2026 — uma engenharia que lhes garante o papel de provedores de última instância.
Na prática, Riad ampliou espaço político ao mesmo tempo em que contingenciou sua folga de capacidade, um ativo estratégico em ambientes voláteis. Se a reabertura do duto iraquiano se confirmar de forma sustentada, ajuda; mas não elimina a disputa por market share que se intensificou com sanções à Rússia e ao Irã.
Essa condição de pivô dá ao Oriente Médio margem para políticas externas mais assertivas — inclusive na interlocução com EUA, China e Europa. E, ao manter o mundo dependente do seu balanço entre cortes e altas, o Golfo transforma decisões técnicas de produção em instrumentos de política de poder.
A aposta nuclear e o raio de alcance da Rosatom
Paralelamente ao petróleo, a Rússia amplia a diplomacia do átomo. Em 25 e 26 de setembro, Moscou firmou documentos com Etiópia para planejar uma usina nuclear e fechou um acordo de US$ 25 bilhões para construir quatro reatores no Irã.
Outros países africanos, como Níger, manifestaram interesse. Trata-se de soft power com efeitos duráveis: contratos de nuclear civil criam dependências tecnológicas e financeiras de décadas, travando alianças que sobrevivem a ciclos de preço do petróleo.
Essa estratégia se soma ao redesenho logístico do petróleo e reforça o objetivo de Moscou de contornar sanções, manter receita e preservar influência em mercados emergentes — especialmente onde a demanda por eletricidade cresce rápido e a matriz ainda é intensiva em térmicas.
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Europa entre o gás liquefeito e a muralha de carbono
A Europa, que se apressou em substituir o gás russo por GNL norte-americano e qatari, enfrenta um dilema: como garantir segurança energética sem sacrificar metas climáticas e competitividade industrial. A resposta política tem sido o CBAM, o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira.
A ideia é cobrar pelo carbono embutido de importações intensivas em CO₂, equalizando a competição com a indústria europeia que já paga pelo ETS. Em termos geopolíticos, o CBAM exporta o preço de carbono europeu e abre uma nova frente de disputa comercial com países fornecedores de aço, cimento, fertilizantes e, em breve, hidrogênio.
Se funcionar, a UE ganha fôlego para manter ambição climática mesmo em ambiente de energia cara. Se provocar retaliações ou “fuga” de investimentos para regimes sem preço de carbono, a muralha vira bumerangue.
De todo modo, o CBAM é um lembrete de que a transição energética também é uma arquitetura de comércio — e que tarifas climáticas tendem a se tornar moeda de negociação geopolítica, assim como as tarifas industriais nos EUA.
A COP30 como palco de credibilidade
O jogo energético não se limita a hidrocarbonetos: passa também por quem financia a transição. Às vésperas da COP30, o Brasil anunciou US$ 1 bilhão para inaugurar o Tropical Forests Forever Facility (TFFF), com objetivo de formar um fundo-endowment de US$ 125 bilhões para remunerar países que preservarem florestas tropicais.
A proposta, que busca US$ 25 bilhões de capital público e filantrópico para tracionar mais US$ 100 bilhões privados, já atraiu interesse de europeus e da China. O recado é diplomático: uma coalizão do Sul Global pode liderar instrumentos financeiros de natureza sistêmica — e, ao fazer isso, deslocar o eixo da negociação climática.
Se o TFFF decolar, cria um “preço” para a floresta em pé e, potencialmente, um hedge climático para países tropicais contra ciclos de commodities. Para investidores, adiciona um vetor de risco-retorno atrelado a desempenho ambiental; para a geopolítica, inaugura um mercado de poder verde, no qual quem paga pela conservação também define padrões.
O que vem agora
A transição será tanto mais estável quanto mais previsível for o lado da oferta. Isso implica: (i) acompanhar a regularidade do fluxo iraquiano via Ceyhan; (ii) medir o alcance real dos acordos nucleares russos em países com redes frágeis e regulações incipientes; (iii) observar a eficácia do CBAM na proteção da indústria europeia sem deflagrar guerras comerciais; e (iv) testar a capacidade dos fundos climáticos — TFFF à frente — de catalisar capitais privados em escala.
Num mundo em que o petróleo ainda dita o ritmo da macroeconomia, mas a legitimidade política migra para quem entrega emissões menores, a disputa por influência passa a ter dois combustíveis: barris e credenciais verdes.
Rússia e Oriente Médio dominam o primeiro; Europa tenta reescrever o comércio com carbono; e o Brasil, se ancorar a agenda florestal com governança e escala, pode emergir como mediador capaz de falar com todos — produtores fósseis, consumidores e financiadores da transição.