Racismo ambiental

Em plena era da crise climática, o que se convencionou chamar de “desastre natural” raramente acontece por acaso. Em bairros com solos instáveis, saneamento precário, drenagem insuficiente e pouca participação nas decisões públicas, quem sofre primeiro — e de forma mais profunda — é quem menos tem condições de se proteger. No Brasil, esse padrão acompanha recortes de cor, renda e território, e molda o fenômeno que especialistas definem como racismo ambiental.

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Os dados oficiais confirmam a desigualdade. Segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 28,6% da população que vive em municípios com até 5 mil habitantes possui rede de coleta de esgoto em seu domicílio.

A precariedade do saneamento básico é mais frequente justamente em territórios historicamente ocupados por populações pretas, pardas e indígenas, que continuam concentrando os menores índices de infraestrutura urbana.

Um relatório recente da Habitat for Humanity Brasil reforça esse quadro, ao apontar que cerca de 66% das pessoas que vivem em áreas de risco nas cidades brasileiras são negras. A combinação de vulnerabilidade ambiental e desigualdade racial evidencia que o problema não é apenas climático ou geográfico: ele é estrutural, histórico e político.

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A partir dessa constatação, o debate sobre racismo ambiental volta a ganhar força no país — ainda que lentamente — e se transforma em uma lente para entender por que as mesmas comunidades sofrem, repetidamente, com enchentes, deslizamentos, contaminação e perdas materiais. E por que essas desigualdades persistem mesmo quando o país cresce, urbaniza-se e amplia alguns serviços públicos.

O que se entende por racismo ambiental

O conceito de racismo ambiental surgiu nos Estados Unidos no início da década de 1980, formulado pelo sociólogo Robert Bullard, após uma série de estudos que mostravam como depósitos de lixo tóxico, indústrias poluentes e obras de alto impacto eram sistematicamente instalados em bairros pobres e de maioria negra.

Racismo ambiental
Sociólogo Robert Bullard

Bullard demonstrou que essas escolhas não eram aleatórias: eram decisões políticas tomadas em conselhos municipais, secretarias de planejamento urbano e órgãos ambientais, com impactos que recaíam, invariavelmente, sobre quem tinha menos poder de contestação.

O termo ganhou o mundo na década seguinte, impulsionado pelo movimento de justiça ambiental, que defendia que o acesso a um ambiente limpo, seguro e saudável é um direito humano.

A ideia era que se os impactos ambientais negativos recaem de forma desproporcional sobre determinados grupos, isso deixa de ser um problema técnico e passa a ser um fenômeno político.

No Brasil, o racismo ambiental ganha contornos próprios. Ele não se manifesta apenas em torno de indústrias poluentes, mas sobretudo na forma como as cidades foram construídas, como a terra foi distribuída e como a população negra foi empurrada para territórios inseguros.

É um fenômeno que atravessa a história da urbanização nacional e que ganha novos capítulos com a intensificação da crise climática.

O Brasil como laboratório da desigualdade ambiental

A combinação de urbanização acelerada, ausência de planejamento e desigualdade racial faz do Brasil um país particularmente vulnerável ao racismo ambiental. A formação de grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo, ocorreu de forma marcada pela ocupação informal e pela segregação espacial.

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Enquanto a elite se estabelecia em áreas planas e centrais, com acesso a infraestrutura, serviços e segurança, a população negra e pobre era empurrada para encostas, fundos de vale, margens de rios e regiões distantes do emprego.

Essa lógica territorial persiste até hoje. Em praticamente todas as grandes capitais brasileiras, os bairros que sofrem com enchentes recorrentes, deslizamentos e infraestrutura precária são os mesmos há décadas — e são também os que concentram maior proporção de população negra.

Além disso, o racismo ambiental também tem uma dimensão regional. No Norte e no Nordeste, onde o acesso a saneamento básico é historicamente menor, a população negra e indígena enfrenta problemas que combinam degradação ambiental, falta de políticas públicas e vulnerabilidade econômica.

No Norte, comunidades ribeirinhas e indígenas vivem sob pressão de desmatamentos ilegais, queimadas e contaminação por mercúrio. No Semiárido, estiagens prolongadas atingem com mais força os municípios com menor capacidade institucional e econômica de adaptação.

Não por acaso, o racismo ambiental no Brasil é reconhecido internacionalmente como um fenômeno que une passado e presente, injustiça social e crise climática.

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Como o racismo ambiental se manifesta hoje

O racismo ambiental no Brasil aparece de forma clara quando se observa o acesso desigual aos serviços mais básicos. No saneamento, as disparidades são evidentes. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), divulgados pelo Instituto Trata Brasil, mostram que mais de 90 milhões de brasileiros ainda vivem sem coleta de esgoto e cerca de 32 milhões não recebem água tratada de forma adequada.

Esses déficits concentram-se nas periferias urbanas e em áreas de maioria negra, onde a precariedade do serviço aumenta o risco de doenças, compromete a qualidade de vida e impede que famílias acessem oportunidades econômicas elementares.

A ocupação de áreas de risco segue a mesma lógica. Em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Belo Horizonte, enchentes e deslizamentos atingem todos os anos os mesmos bairros, quase sempre localizados em encostas, margens de rios ou regiões de urbanização precária.

Esses territórios foram historicamente ocupados por famílias de baixa renda — em grande parte negras — que, por falta de alternativas, acabaram empurradas para áreas onde infraestrutura, drenagem e serviços públicos chegam de forma tardia ou insuficiente. 

Quando esses episódios aparecem no noticiário como “tragédias naturais”, perde-se o essencial: a desigualdade territorial que define quem está mais exposto aos riscos.

A desigualdade ambiental também está presente na forma como o espaço urbano recebe atividades poluentes. Em diversas cidades de porte médio e regiões metropolitanas, indústrias químicas, siderúrgicas e petroquímicas tendem a ser instaladas em áreas periféricas, próximas a comunidades pobres.

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Moradores convivem diariamente com ar contaminado, ruído excessivo, risco de acidentes e solo degradado, muitas vezes sem acesso a informações completas sobre os impactos dessas operações ou a canais de participação em decisões sobre licenciamento ambiental. O resultado é um acúmulo de danos que recai sobre quem já vive em condições mais vulneráveis.

Fora isso, há ainda manifestações silenciosas, como os chamados desertos alimentares. Bairros periféricos e de maioria negra costumam ter menos mercados com oferta de alimentos frescos e saudáveis, enquanto produtos ultraprocessados — mais baratos e de menor valor nutricional — acabam predominando no comércio local. 

Essa diferença na disponibilidade molda padrões de consumo e contribui para um ciclo de adoecimento que afeta com mais força as populações já vulnerabilizadas.

Essa geografia alimentar aprofunda problemas de saúde já presentes nas periferias, ampliando casos de diabetes, hipertensão e outras doenças crônicas que se acumulam onde o acesso a direitos básicos é limitado.

Nesse cenário, a crise climática surge como um fator que intensifica desigualdades existentes. Enchentes recordes no Sul, ondas de calor mais intensas no Sudeste e estiagens prolongadas no Nordeste impactam todo o país, mas seus efeitos são especialmente severos para quem vive em moradias improvisadas, sem proteção, sem seguro, sem áreas de sombra e sem infraestrutura capaz de amortecer os danos.

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Para essas famílias, cada evento extremo representa um risco direto à vida e um desgaste contínuo do que já é frágil. E, quando esses impactos se repetem sempre nos mesmos territórios, revelam um padrão que não é climático, mas social: não é o fenômeno em si que define quem sofre mais, e sim quem ocupa os espaços mais vulneráveis da cidade.

É nesse ponto que a crise ambiental escancara as bases mais profundas da desigualdade brasileira — bases que têm cor, têm classe e têm endereço.

Cor, classe e território: as variáveis invisíveis

O racismo ambiental é, antes de tudo, uma questão sobre quem tem direito a viver bem. A relação entre cor, classe e exposição a riscos ambientais não é coincidência: é uma escolha política reiterada por décadas.

Moradores de bairros nobres têm ruas pavimentadas, drenagem eficiente, arborização e equipamentos públicos de proteção. Já nas periferias, o padrão é o oposto: valas a céu aberto, ausência de calçadas, moradias frágeis, falta de drenagem e longas distâncias até serviços essenciais.

Em enchentes, quem vive nesses locais perde tudo rapidamente; quem vive em áreas ricas raramente precisa deixar sua casa.

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Essa assimetria se agrava pela falta de participação política. Comunidades periféricas têm menos canais institucionais para influenciar obras, autorizações e licenças ambientais.

É comum que megaempreendimentos sejam construídos sem consulta adequada às populações afetadas, reforçando um ciclo de decisão sem representação.

E, quando esses processos se repetem sempre nos mesmos territórios, um padrão se torna impossível de ignorar: a cor da pele continua sendo uma das variáveis mais determinantes do destino ambiental no Brasil.

A vulnerabilidade climática tem cor, território e CEP — e é justamente nesse ponto que entra o papel do Estado e das políticas públicas, porque nenhuma dessas desigualdades se sustenta sem escolhas institucionais.

Estado, políticas públicas e a lacuna estruturante

A superação do racismo ambiental exige mais do que combater desastres. Exige uma mudança profunda na maneira como o Estado planeja cidades, distribui recursos e regula o uso da terra.

O país possui legislação ambiental robusta, mas costuma falhar na aplicação. Municípios enfrentam escassez de recursos, falta de planejamento urbano e dificuldade de integrar políticas de habitação, saneamento, transporte e gestão ambiental.

Sem essa integração, obras de drenagem podem ser neutralizadas pela falta de controle do solo, enquanto programas de habitação podem reproduzir as mesmas segregações espaciais que deveriam combater.

É justamente nesse ponto que a habitação social se torna decisiva: quando bem planejada e incorporada ao território, ela deixa de ser apenas uma solução de moradia e passa a oferecer segurança, infraestrutura e mobilidade — elementos centrais para reduzir o racismo ambiental.

Mas, historicamente, programas habitacionais brasileiros deslocaram populações pobres para áreas distantes, desassistidas e sem empregos próximos, reforçando problemas em vez de solucioná-los.

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Esse tipo de distorção também aparece quando se fala em financiamento climático: mesmo com acesso crescente a fundos internacionais, o país ainda enfrenta dificuldade para usar esses recursos de forma consistente.

A implementação de planos de adaptação avança devagar, sobretudo em cidades de porte médio — justamente onde vivem parcelas significativas da população mais vulnerável aos efeitos ambientais.

Essa lentidão não ocorre isoladamente: ela se conecta a uma discussão mais ampla, que ultrapassa fronteiras nacionais e coloca o Brasil no centro de um debate global sobre desigualdade climática.

O debate global e o lugar do Brasil

Em conferências da ONU e encontros internacionais, países do Sul Global argumentam que são os mais afetados pela crise climática, apesar de contribuírem menos para suas causas.

A desigualdade internacional se soma às desigualdades internas, criando camadas múltiplas de vulnerabilidade. O Brasil, pela sua diversidade ecológica e social, ocupa posição central nesse debate.

É visto como um país-chave na proteção da floresta Amazônica, no combate ao desmatamento e na construção de modelos de desenvolvimento sustentáveis. Ao mesmo tempo, carrega desafios intensos de urbanização, saneamento e desigualdade racial.

A pressão internacional por mitigação e adaptação também coloca na mesa a necessidade de proteger povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que sofrem com invasões, contaminação e violência ambiental.

Esses grupos, frequentemente invisibilizados pelas políticas nacionais, são essenciais para a preservação ambiental e para a construção de alternativas sustentáveis.

E é justamente quando se observa o papel que desempenham — e o quanto são ignorados — que surge uma questão central: por que um tema tão decisivo continua fora das prioridades do país?

Um chamado para colocar o tema no centro da agenda

Racismo ambiental

O racismo ambiental precisa deixar de ser um tema periférico no debate público e passar a integrar o centro da agenda nacional. A forma como cidades e territórios são planejados determina quem terá direito a um futuro seguro. Em um país onde desastres se repetem e recaem sobre as mesmas comunidades, discutir justiça ambiental é discutir democracia.

A crise climática amplia as desigualdades brasileiras, mas também abre espaço para repensar modelos. Políticas de adaptação, investimento em saneamento, habitação digna, drenagem urbana e participação comunitária são caminhos possíveis.

É necessário, nesse contexto, reconhecer que ambientes degradados e riscos extremos não são distribuídos ao acaso: seguem uma geografia marcada por raça, renda e história.

O racismo ambiental, nesse sentido, funciona como um espelho da sociedade brasileira. Ele revela que a ameaça climática não é apenas sobre o futuro, mas sobre escolhas feitas ao longo de décadas.

Revela que quem sempre teve pouco continua pagando o preço mais alto. E mostra que nenhum plano de desenvolvimento será completo enquanto a desigualdade ambiental permanecer invisível. No fim, discutir o racismo ambiental é falar sobre quem pode viver bem — e quem o Brasil ainda autoriza apenas a sobreviver.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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