Brasília — O Brasil atravessa uma inflexão silenciosa no mercado de trabalho. Depois de quase uma década de estagnação, os indicadores mais recentes mostram que o emprego formal e a renda dos mais pobres voltaram a crescer. Dados do Caged e do Ipea revelam que a expansão de programas sociais e o aumento do investimento público se tornaram motores de uma recuperação baseada no consumo das famílias e na atividade local.
Entre janeiro e setembro de 2025, mais de 700 mil beneficiários do Bolsa Família conseguiram empregos com carteira assinada, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. A proporção de trabalhadores formais no país atingiu o maior nível desde 2014, e a taxa de desemprego, o menor patamar em uma década.
“Nunca houve um número tão alto de ocupados com carteira no Brasil”, diz o economista Marcos Hecksher, do Ipea. “Os programas de transferência têm efeito estabilizador — garantem consumo básico e ajudam o pequeno comércio a girar.”
Esse efeito é descrito pelos técnicos do Instituto como “multiplicador local”. Cada real transferido por meio do Bolsa Família ou do Benefício de Prestação Continuada gera, em média, R$ 1,80 em atividade econômica no entorno, segundo projeções do IBGE.
Em comunidades urbanas e cidades médias do Nordeste, esse impulso tem sido visível no comércio e nos serviços.
Para o pesquisador Marcelo Neri, da FGV Social, o novo ciclo de valorização da renda dos mais pobres é “o dado econômico mais relevante desde a pandemia”.
De acordo com levantamento da instituição, a renda do trabalho da metade mais pobre da população cresceu 10,7% entre 2022 e 2024, ritmo 50% superior ao dos 10% mais ricos.
“A desigualdade voltou a cair porque a base da pirâmide se movimentou. Isso se deve a uma combinação de programas sociais e de maior oferta de emprego formal”, afirma Neri.
Os números do Caged confirmam a tendência. Desde 2023, três em cada quatro novas vagas formais foram preenchidas por beneficiários do Bolsa Família.

Em regiões de maior vulnerabilidade, como o interior do Maranhão, do Piauí e do sertão pernambucano, a formalização cresceu acompanhando o aumento do crédito público e das obras do Novo PAC.
No entanto, ainda há quem associe o aumento do gasto social ao risco de desequilíbrio fiscal. Um levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) sustenta parte desse argumento ao mostrar que cerca de um terço dos jovens que cresceram em famílias beneficiárias do Bolsa Família permanecem no programa.
Para o diretor da instituição, Paulo Tafner, o dado refletiria “persistência da pobreza estrutural e baixa mobilidade”. Entretanto, outros economistas consideram essa leitura incompleta.
Luciana Servo, presidente do Ipea, argumenta que o problema não está na transferência de renda, mas na falta de continuidade de políticas de emprego e investimento.
“Nos períodos em que o Estado reduziu sua capacidade de investimento, a mobilidade travou. Quando voltou a investir, a renda voltou a subir”, diz.
Nesse sentido, o investimento em programas sociais precisa existir e ser acompanhado de políticas de incentivo ao primeiro emprego e de fomento à geração de renda.
Inclusive, a série histórica do Ipea mostra que, em ciclos de expansão de gasto público — como entre 2004 e 2013 e novamente a partir de 2023 — o crescimento do PIB foi puxado pela formação bruta de capital fixo e pelo consumo das famílias. Já nos períodos de ajuste e corte de investimento, a renda dos mais pobres caiu e a informalidade aumentou.
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O economista Felipe Rezende, da Bard College, nos Estados Unidos, reforça que “o equilíbrio fiscal é desejável, mas não deve significar retração de investimento público”.
Para ele, “o verdadeiro equilíbrio está em garantir que o Estado invista onde o setor privado não chega — educação, saúde, infraestrutura social — e colha depois o retorno em produtividade e arrecadação”.
Nos últimos dois anos, o governo ampliou linhas de crédito para municípios e organizações sociais, e relançou programas de infraestrutura em saúde e educação. Esses investimentos vêm acompanhados de efeitos distributivos regionais: Norte e Nordeste registraram os maiores crescimentos relativos de emprego formal desde 2022.
“Isso mostra que o desenvolvimento pode ser descentralizado quando há gasto público orientado à inclusão”, avalia o economista Pedro Rossi, da Unicamp.
A realidade dos dados sugere que o crescimento deve ser sustentado pela renda do trabalho e pela ação pública consistente, para que assim o país possa sair de fato de sua década perdida.
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