O marco temporal é a tese segundo a qual apenas as terras indígenas que estivessem ocupadas por povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, poderiam ser reconhecidas e demarcadas pelo Estado brasileiro.
Na prática, essa regra impede o reconhecimento de territórios de povos que foram expulsos de suas terras antes dessa data por violência, remoções forçadas, grilagem ou ações promovidas ou toleradas pelo próprio Estado.
Ao estabelecer esse recorte, o marco temporal ignora o processo histórico de expulsão dos povos indígenas ao longo do século XX, período marcado por avanço da fronteira agrícola, projetos de colonização, obras de infraestrutura e repressão estatal.
Comunidades inteiras foram deslocadas de forma compulsória, sem qualquer registro formal de posse, o que torna a exigência de ocupação em 1988 um critério excludente e incompatível com a realidade histórica do país.
Essa tese contraria a própria Constituição de 1988, uma vez que o texto constitucional reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, deixando claro que esses direitos são anteriores à própria formação do Estado brasileiro.
Por essa razão, a Constituição não estabelece limite temporal para o reconhecimento dessas terras, nem condiciona o direito indígena à presença física em uma data específica.
Esse entendimento foi consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2023, quando a Corte rejeitou o marco temporal por ampla maioria. No julgamento, os ministros afirmaram que a tese viola a Constituição, enfraquece a proteção dos povos indígenas e ignora a violência histórica sofrida por essas comunidades.
A decisão fixou o entendimento de que a demarcação deve considerar a ocupação tradicional e o vínculo histórico com o território, e não um marco cronológico arbitrário.

Entretanto, o Congresso Nacional decidiu reagir a esse entendimento e aprovou a Lei 14.701/2023, restabelecendo o marco temporal na legislação ordinária, em uma tentativa direta de contornar a decisão do STF.
A proposta foi impulsionada principalmente pela bancada ruralista e por setores ligados ao agronegócio, que veem nas demarcações um obstáculo à expansão econômica e à regularização fundiária de áreas disputadas.
Com a aprovação da lei, o conflito deixou de ser apenas jurídico e passou a ser institucional. O Congresso buscou reintroduzir, por meio de lei, uma tese já considerada inconstitucional pelo Supremo, realimentando o embate entre Legislativo e Judiciário sobre quem define os limites dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
Além disso, o debate trouxe à tona a omissão histórica do Estado brasileiro. A própria Constituição determinou que todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, prazo que nunca foi cumprido.
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Décadas depois, centenas de processos seguem paralisados, o que alimenta conflitos fundiários, violência contra comunidades indígenas e insegurança jurídica no campo.
Ao retomar o julgamento da lei aprovada pelo Congresso, o STF passou a discutir não apenas a validade do marco temporal, mas também mecanismos para enfrentar essa omissão estatal. Ministros passaram a defender prazos e critérios para obrigar a União a concluir as demarcações pendentes, deslocando o foco do debate da restrição de direitos para a responsabilização do Estado pelo descumprimento da Constituição.
Nesse contexto, o Congresso voltou a avançar sobre o tema. Em dezembro de 2025, o Senado aprovou, em dois turnos, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tenta inserir o marco temporal diretamente no texto constitucional.
A medida representa uma escalada do conflito, ao buscar blindar a tese contra decisões do STF e restringir direitos indígenas por meio de alteração constitucional.
Para o Supremo, no entanto, nem mesmo uma emenda pode esvaziar direitos fundamentais que integram o núcleo de proteção da Constituição. Ministros têm reiterado que os direitos indígenas não são concessões do Estado, mas garantias constitucionais que não podem ser relativizadas por maiorias circunstanciais no Parlamento.
O embate em torno do marco temporal, portanto, não é apenas uma divergência técnica ou jurídica. Ele envolve a disputa por terras, interesses econômicos no campo, a proteção de povos historicamente vulnerabilizados e os limites da atuação dos Poderes da República.
Para os povos indígenas, o resultado desse conflito é decisivo, pois afeta diretamente a permanência em seus territórios, a preservação de suas culturas e a própria sobrevivência física das comunidades.
No centro da disputa está a pergunta sobre qual projeto de país prevalece: aquele que cumpre a Constituição e reconhece direitos históricos ou aquele que busca restringi-los em nome de interesses econômicos e arranjos políticos no Congresso.
O desfecho do debate sobre o marco temporal ajudará a definir se a Constituição de 1988 continuará sendo um instrumento efetivo de proteção social ou se poderá ser esvaziada por decisões legislativas que contrariem seu próprio espírito.











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