Boicotes a marcas, politização de campanhas publicitárias e indignações fabricadas deixaram de ser reações isoladas e viraram método político. O episódio mais recente, envolvendo a marca Havaianas, mostrou novamente como setores da direita brasileira passaram a transformar consumo em campo de batalha ideológica.
A campanha estrelada por Fernanda Torres, ao brincar com a expressão “não começar 2026 com o pé direito”, foi interpretada como provocação política — não porque efetivamente tivesse conteúdo político relevante, mas porque serve a uma engrenagem que vive de produzir conflito permanente.
Esse tipo de reação segue uma lógica conhecida: identificar um elemento cultural neutro, atribuir a ele um significado político, inflamar as redes com indignação teatral e convocar o boicote como atitude “militante”.
O processo gera um duplo efeito. Primeiro, consolida identidade ideológica — quem “se indigna” demonstra fidelidade ao grupo. Segundo, mantém a base mobilizada, em estado constante de alerta, mesmo quando não há pauta concreta de governo, propostas ou debate substantivo.
Não é novidade. Houve boicote ao chocolate Bis por causa de um influenciador, à Natura por causa de representatividade, a campanhas do Banco do Brasil, à Disney, à Nike, à Heineken e a outras marcas que, em algum momento, foram declaradas “inimigas ideológicas”.
O padrão se repete: uma frase, uma escolha estética, um rosto público ou uma decisão de comunicação vira pretexto para uma cruzada. A direita transforma marketing em militância e consumo em campo de guerra.
Não se trata apenas de exagero emocional coletivo. Trata-se de estratégia. Essa lógica sustenta a ideia de que “tudo é política”, não no sentido de participação democrática, mas de polarização absoluta.

Quanto mais trivial for o objeto da guerra cultural, mais eficaz ela pode ser. Porque desloca o debate do que importa, desigualdade, orçamento, saúde, educação, trabalho, política fiscal, e mantém o público preso a controvérsias simbólicas que desgastam emocionalmente e consomem energia social sem produzir avanço algum.
Existe também um cálculo econômico invertido. Boicotes raramente funcionam. Na maioria das vezes, acontecem duas coisas: ou o efeito é nulo, porque o consumo cotidiano segue igual, ou a marca ganha ainda mais visibilidade.
Em alguns casos, cresce em vendas, porque vira assunto. O mercado, que não age por convicção ideológica, entende perfeitamente isso: guerra cultural gera engajamento, engajamento vira alcance, alcance vira marca fortalecida.
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O discurso acaba, ironicamente, fortalecendo conglomerados empresariais e interesses econômicos muito distantes da base que supostamente se mobiliza para “combater” algo.
O caso Havaianas, portanto, não é sobre chinelo. É sobre o uso deliberado da cultura como ferramenta de mobilização política. É sobre criar crises simbólicas controláveis para sustentar identidade política mesmo sem pauta concreta.
É sobre animar militância sem necessariamente oferecer projeto de país. E é também sobre como redes sociais amplificam artificialmente ondas de indignação, fazendo parecer grande algo que, fora do ambiente digital, dificilmente chega à padaria, à fila do ônibus ou ao cotidiano real da maioria das pessoas.
Há ainda um efeito colateral para a democracia: o empobrecimento do debate público. Quando o espaço político é ocupado por disputas como “chinelo ideológico”, “biscoito comunista” ou “caneca subversiva”, o país deixa de discutir o essencial.
Enquanto a guerra cultural grita, o orçamento público é decidido, políticas econômicas são definidas, estruturas de poder se organizam — muitas vezes sem escrutínio adequado, porque a atenção coletiva foi sequestrada por polêmicas fabricadas.
Por isso, reduzir episódios como o da Havaianas a “exagero” é insuficiente. Há cálculo, método e intencionalidade. Não é sobre publicidade.
É sobre política e, sobretudo, sobre uma estratégia que aposta em manter a sociedade permanentemente tensionada, indignada e distraída. A pergunta que fica não é se o chinelo é de esquerda ou de direita. A pergunta é: quem ganha quando transformar qualquer coisa em guerra cultural vira um jeito de fazer política?











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