Transição agroecológica
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Brasília (DF) — A agroecologia na América Latina não é apenas uma filosofia de vida ou um nicho de mercado, mas uma engrenagem econômica robusta, frequentemente subestimada pelas estatísticas oficiais. Essa é a conclusão central do relatório Perspectivas da Agroecologia na América Latina (2021–2025), lançado nesta semana. Fruto de uma pesquisa-ação participativa que acompanhou 527 famílias agricultoras no Brasil, Paraguai, Equador, Colômbia, El Salvador, Guatemala e México, o documento mapeou 3.547 hectares e trouxe à tona dados que confrontam a lógica puramente mercantilista do agronegócio.

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Diferente de censos tradicionais, o estudo foi construído a partir das bases. As próprias famílias, organizadas em dez movimentos sociais e organizações, coletaram os dados usando o aplicativo LiteFarm, permitindo um diagnóstico cirúrgico de uma realidade muitas vezes invisível.

O resultado aponta que a transição agroecológica funciona e gera renda, mas opera no limite da capacidade humana devido à escassez de mão de obra e à falta de políticas estruturantes.

O dado mais revelador do estudo diz respeito à economia oculta do autoconsumo. Segundo o relatório, cerca de um terço de toda a produção agroecológica mapeada não chega às prateleiras, sendo destinada diretamente à alimentação das próprias famílias.

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Em 2025, mais de 85% dos núcleos familiares utilizaram parte de sua colheita para consumo próprio. O documento é enfático ao analisar esse fenômeno, afirmando que, embora frequentemente invisibilizada, essa produção funciona como fonte de renda não monetária e garante uma economia significativa no orçamento doméstico, reduzindo vulnerabilidades sociais e econômicas.

Isso significa que a eficiência econômica dessas famílias é superior ao que o PIB agrário convencional consegue mensurar. Para 76,1% dos entrevistados, a atividade agrícola, somando vendas e autoconsumo, constitui a principal fonte de renda, provando que a agroecologia é capaz de sustentar economicamente os territórios, e não apenas servir de complemento a salários urbanos ou outras atividades.

Apesar da vitalidade produtiva, o relatório acende um alerta sobre a continuidade do modelo no longo prazo. A falta de mão de obra foi apontada como a principal limitação produtiva por 59% das famílias, um índice que se manteve consistentemente alto e no topo das preocupações desde o início do monitoramento sistematizado em 2022.

Esse é um problema estrutural que reflete o envelhecimento do campo latino-americano. O texto destaca que a falta de sucessão no campo impacta diretamente na escassez de trabalhadores e desafia a transmissão de conhecimentos acumulados por gerações.

A pesquisa detectou que em 54,2% das unidades agrícolas monitoradas não há presença de jovens entre 15 e 29 anos. Nos locais onde a juventude está presente, o estudo identificou uma correlação direta com a renda: o interesse em permanecer na agroecologia é significativamente maior quando o jovem possui autonomia financeira.

Transição agroecológica
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Enquanto a disposição para ficar no campo é baixa entre os dependentes, ela salta para níveis de quase totalidade entre aqueles com alta independência econômica. O relatório conclui que o desejo de permanecer na terra existe, mas não resiste à falta de perspectivas financeiras e de infraestrutura.

Outro mito derrubado pelo levantamento é o de que a agricultura camponesa seria avessa à tecnologia. A pesquisa só foi viável porque 90% das famílias sabem utilizar smartphones e o aplicativo de gestão agrícola.

O WhatsApp, por exemplo, já se consolidou como o segundo maior canal de contato com consumidores, utilizado por quase 58% das famílias, perdendo apenas para a venda direta na propriedade.

Contudo, a infraestrutura estatal não acompanha essa digitalização, visto que a maioria das famílias classifica o sinal de internet que recebe como mediano ou ruim, expondo o abismo digital que ainda freia a modernização do campo na região.

No que tange à comercialização, houve uma mudança no perfil de acesso aos mercados. As feiras livres, historicamente o principal canal de venda da agricultura familiar, sofreram um declínio acentuado, passando de 39% de utilização pelas famílias em 2022 para 26% em 2025.

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Em contrapartida, a venda direta se fortaleceu, sustentada por um ativo intangível: a confiança. Para a maioria das famílias, a relação direta com o consumidor é valorizada não apenas pelo preço, mas pela construção de laços de empatia e reconhecimento, oferecendo um contraponto à despersonalização das cadeias de commodities.

Na análise final, o relatório deixa claro que a agroecologia na América Latina avança muito mais pela resiliência das redes comunitárias do que por apoio governamental.

Quando questionadas sobre como superar seus desafios, a resposta mais frequente das famílias, com 62 menções diretas, foi um pedido por políticas públicas mais efetivas.

O relatório conclui que a região possui um patrimônio agroecológico significativo, construído por práticas diversas, manejo ambiental consistente e forte engajamento comunitário.

Mas também deixa claro que, sem políticas que enfrentem a falta de mão de obra, ampliem mercados e reconheçam oficialmente as práticas agroecológicas, a transição seguirá avançando de forma desigual, sustentada sobretudo pela resiliência das próprias famílias — e não por compromissos estruturais dos governos da região.

Redação IA Dinheiro

Redação IA Dinheiro

Equipe editorial dedicada a explicar decisões do Estado, traduzir políticas públicas e orientar cidadãos sobre como acessar seus direitos e benefícios sociais.

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