Sudão

Cartum (Sudão) — A confirmação de condições de fome em Darfur e os novos relatos de crimes de guerra em El-Fasher revelam o colapso de um país que transformou a escassez em instrumento de dominação. Desde 2023, quando o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF) se voltou contra o Exército do Sudão, a guerra civil reduziu cidades inteiras a ruínas e confinou milhões de pessoas em uma rotina de fome, deslocamento e medo. Agora, o Tribunal Penal Internacional (TPI) volta a investigar os responsáveis por massacres e estupros em massa, enquanto a comunidade internacional reage com o mesmo silêncio que permitiu o genocídio de duas décadas atrás.

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A escalada recente começou em El-Fasher, capital de Darfur do Norte, onde a RSF impôs um cerco de 18 meses antes de tomar o controle da cidade. Com os acessos bloqueados e o abastecimento interrompido, milhares de civis foram privados de comida, remédios e água potável.

Segundo o sistema de classificação da ONU (IPC), Al-Fashir e Kadugli, no sul do país, já vivem em condições de fome. O número de sudaneses em insegurança alimentar severa chega a 21 milhões — quase metade da população.

Médicos Sem Fronteiras relata que todas as crianças que conseguiram escapar da cidade chegam desnutridas, e muitos adultos, em estado de inanição.

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Os ataques contra centros comunitários e cozinhas populares, documentados por organizações locais, evidenciam uma tática de guerra: destruir o que mantém a vida. O cerco econômico e alimentar serve, na prática, como mecanismo de controle social e limpeza étnica.

A fome substitui o fuzil. Ao mesmo tempo, a destruição de mercados, estradas e estoques agrícolas mergulhou o país em uma espiral de colapso econômico, inviabilizando a recuperação mesmo nas áreas sob controle do governo.

O promotor do TPI, Karim Khan, declarou “profundo alarme e imensa preocupação” com a escalada da violência e afirmou que os crimes relatados — assassinatos em massa, estupros e perseguições — podem configurar crimes contra a humanidade.

O tribunal já havia condenado, em 2024, o ex-líder Janjaweed, Ali Kushayb, por atrocidades semelhantes cometidas em 2004, quando a primeira guerra de Darfur chocou o mundo. Duas décadas depois, o ciclo se repete: o mesmo território, os mesmos métodos, a mesma sensação de impunidade.

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A nova ofensiva da RSF representa não apenas uma tragédia humanitária, mas o colapso final da economia sudanesa. O bloqueio à entrada de alimentos e combustíveis, somado à fuga de milhões de trabalhadores rurais, com quase 13 milhões de pessoas forçadamente deslocadas, comprometeu a produção agrícola e interrompeu exportações essenciais, como gergelim e gado.

O Banco Mundial estima que o PIB do Sudão tenha encolhido em mais de 40% desde o início da guerra, e a inflação acumulada ultrapassa 250% ao ano.

A crise também ameaça desestabilizar o Sahel, região já marcada por golpes de Estado e insurgências extremistas. Com fronteiras porosas e redes armadas transnacionais, o conflito sudanês aprofunda o vácuo de poder que se estende do Chade à Etiópia.

Ainda assim, a resposta internacional continua fragmentada: as potências ocidentais concentram-se em crises mais midiáticas, enquanto o Conselho de Segurança da ONU se divide entre condenações retóricas e vetos cruzados.

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Para o TPI, o desafio é transformar a coleta de provas em responsabilização efetiva — algo que a história de Darfur mostra ser improvável sem pressão política real. A condenação de Kushayb foi simbólica, mas não alterou a lógica de impunidade que sustenta a violência.

O novo inquérito sobre El-Fasher pode recolocar o Sudão no mapa moral do mundo, mas o tribunal carece de meios para agir diante de uma guerra ativa e um Estado desintegrado.

Enquanto isso, a fome avança como uma fronteira invisível. Nas estradas que ligam Darfur a Cartum, famílias inteiras caminham quilômetros em busca de refúgio, carregando crianças famintas e poucos pertences.

As imagens se repetem como uma farsa trágica de 2003: acampamentos improvisados, epidemias e silêncios. O Sudão, que um dia prometeu reconstruir-se após o fim de Omar al-Bashir, volta a ser uma terra onde a sobrevivência é uma forma de resistência. E o mundo, mais uma vez, assiste em um silêncio ensurdecedor.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista dedicado a explicar decisões do Estado, traduzir políticas públicas e orientar cidadãos sobre como acessar seus direitos e benefícios sociais.

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