A Câmara aprovou na madrugada desta quarta-feira (10) o texto que ficou conhecido como PL da Dosimetria, uma reconfiguração profunda das regras de cálculo de pena e progressão de regime.
O projeto, votado em clima de tensão e sob protestos da oposição, não apenas reduz o tempo de prisão dos condenados pelo 8 de janeiro, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, como altera fundamentos da execução penal que alcançam outros crimes previstos no Código Penal.
O movimento, articulado pelo centrão e conduzido por Hugo Motta e Paulinho da Força, rompeu semanas de impasse e recolocou o Congresso no centro de uma disputa sensível: até onde o Legislativo pode ir ao redesenhar parâmetros penais logo após o STF concluir condenações históricas?
A sessão — marcada por violência contra deputados, retirada de jornalistas do plenário e corte da transmissão oficial — expôs a natureza política da decisão.
Ao aprovar o projeto por larga maioria, a Câmara sinalizou que pretende redefinir o contorno jurídico e político da resposta institucional ao 8 de janeiro, ainda que isso implique repercussões para além dos crimes golpistas.
A mudança que beneficia diretamente os condenados do golpe
O ponto central do projeto é a fusão dos crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito quando praticados no mesmo contexto.
O Supremo Tribunal Federal vinha tratando esses delitos como autônomos, aplicando penas cumulativas que resultavam em condenações longas, especialmente para o grupo principal — formado por Bolsonaro, ex-ministros militares, ex-comandantes e articuladores diretos da tentativa de ruptura institucional.
Com a nova regra, vale apenas a pena mais grave, que no caso é a do golpe de Estado. Agravantes e atenuantes ainda serão aplicados, mas a base de cálculo se torna muito menor.
Por isso, líderes da oposição projetam que a pena de Bolsonaro pode cair para algo em torno de dois anos e quatro meses em regime fechado, contra mais de sete anos previstos pelo cálculo atual da vara de execução penal.
O Supremo ainda precisará definir como aplicar a retroatividade e se aceitará o abatimento de pena por estudo ou trabalho realizados em prisão domiciliar.
Há ainda um benefício adicional para centenas de participantes dos atos: se o crime for cometido em contexto de multidão e o condenado não tiver exercido liderança nem financiado as ações, a pena pode ser reduzida de um terço a dois terços.
É um dispositivo claramente direcionado aos réus do 8 de janeiro que atuaram como massa de apoio, mas não como articuladores.

O que ultrapassa o 8 de janeiro: a progressão de regime como ponto de inflexão
Se a fusão de crimes afeta apenas o episódio golpista, a mudança na progressão de regime tem impacto muito mais amplo. A legislação atual condiciona a progressão para réus primários condenados por crimes com violência ou grave ameaça ao cumprimento de 25% da pena.
O substitutivo reduz esse percentual para 16%, equiparando a regra a casos sem violência ou grave ameaça — uma flexibilização que, segundo a própria Agência Câmara, se estende a diversos crimes que contêm a expressão “grave ameaça” em sua redação, mas não pertencem aos títulos I (crimes contra a vida) ou II (crimes contra o patrimônio) do Código Penal.
Isso significa que crimes como afastamento de licitante, favorecimento da prostituição ou rufianismo passam a exigir menos tempo de cumprimento de pena para progressão ao semiaberto.
O relator tinha como objetivo garantir que réus do 8 de janeiro, cujo enquadramento jurídico inclui violência ou grave ameaça, não fossem impedidos de progredir mais cedo. Mas, ao vincular a regra a categorias gerais do Código Penal, abriu espaço para efeitos colaterais que atingem condenados de naturezas diversas.
Essa reestruturação da progressão de regime é responsável por parte importante da crítica ao projeto: ao alterar um eixo central da execução penal, o Congresso interveio de forma estrutural em uma política pública sensível, sem estudo aprofundado de impacto e em meio a uma crise política aguda — movimento visto por juristas e parlamentares progressistas como um retrocesso no esforço de fortalecer o sistema de responsabilização por crimes graves.
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Abate de pena e retroatividade: um novo desenho para execução penal
Outro ponto que se estende além do 8 de janeiro é a possibilidade de computar estudo e trabalho realizados em prisão domiciliar para abatimento de pena.
O Superior Tribunal de Justiça já vinha admitindo essa interpretação em decisões pontuais, mas o texto aprovado transforma a orientação jurisprudencial em regra. Na prática, condenados que estejam em prisão domiciliar poderão acelerar o cumprimento de pena, ampliando o alcance da medida para além dos réus golpistas.
Essa combinação — fusão de crimes restrita ao 8/1, progressão de regime ampliada para outras categorias e abatimento de pena generalizado — cria um cenário híbrido em que a motivação política do projeto convive com efeitos sistêmicos.
A retroatividade obrigatória das normas penais mais benéficas garantirá que centenas de condenados, não apenas envolvidos no golpe, requeiram revisão de seus processos.
O que está em jogo agora
O texto segue para o Senado, onde a condução de Davi Alcolumbre deve acelerar a tramitação. A oposição promete contestar judicialmente trechos do projeto caso ele seja aprovado sem mudanças, especialmente aqueles que fragilizam a resposta institucional a crimes contra a democracia.
O PL da Dosimetria é um sinal preocupante de que o Congresso escolheu suavizar a punição em um momento em que o país ainda processa a gravidade do ataque ao Estado Democrático de Direito.
Também representa uma mudança de rota em debates estruturais da execução penal, feita sem o cuidado técnico necessário e sob pressão de interesses imediatos.
Seja qual for o desfecho, a madrugada de votação deixou claro que o Legislativo não se limitou a rever penas do 8 de janeiro: interveio diretamente na arquitetura da responsabilização penal, alterando critérios que vinham sendo aplicados nas decisões do STF e produzindo efeitos que podem ultrapassar o caso concreto.











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