Sudão

O Sudão vive uma catástrofe humanitária e o planeta acompanha como quem assiste a um noticiário distante, desses que passam entre o preço do barril e a previsão do PIB. A cada semana, surgem novos números sobre El Fasher, Darfur e Kordofan. A cada semana, o mundo reage com a mesma coreografia: nota de preocupação, coletiva de imprensa, silêncio.

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É impressionante como a barbárie se ajusta bem ao calendário global. Quase 90 mil pessoas fugiram nos últimos quinze dias, mas nenhum mercado oscilou.

Onze milhões de mulheres e meninas estão em insegurança alimentar aguda, mas nenhuma liderança interrompeu sua agenda para tratar disso com a mesma urgência dedicada aos juros ou ao câmbio. Ser mulher no Sudão virou fator de risco — não político, não social, mas biológico.

A ONU Mulheres já afirmou: elas são as últimas a comer, quando comem; são elas que pariram nas ruas depois do saque do último hospital de maternidade; são elas que saem em busca de folhas e bagas e voltam — quando voltam — marcadas pela violência.

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Mas nada disso muda o ritmo do mundo. A economia segue, os fóruns seguem, as cúpulas seguem, porque a fome, quando atinge mulheres africanas, não é tratada como tragédia, e sim como paisagem.

É a mesma lógica que sempre guiou a diplomacia internacional: algumas vidas contam, outras compõem cenário. O que acontece em Darfur não altera discursos, não altera compromissos, não altera orçamentos. O colapso virou ruído de fundo.

A diretora da OIM alertou que a ajuda humanitária está à beira do colapso. Mas colapso para quem? Para as famílias que fugiram a pé, atravessando desertos sem água, comida ou acesso a um médico? Essas já estavam em colapso há muito tempo. O que está colapsando agora é a capacidade do mundo de justificar sua própria indiferença.

A diplomacia opera no modo automático: pede cessar-fogo, pede acesso seguro, pede financiamento. É um vocabulário higienizado, pensado para não ferir ninguém — exceto, é claro, os que já foram feridos.

Enquanto isso, adolescentes sudanesas recebem as menores porções de comida, mães escondem crianças em sacos para fugir de bombardeios e meninas desaparecem durante as fugas caóticas. Nada disso causa ruptura na ordem internacional. O horror, quando repetido, vira normalidade. E quando a normalidade é inaceitável, resta a palavra mais perigosa de todas: hábito.

A verdade é simples: o mundo se acostumou a ver mulheres morrerem. E a fome, que deveria ser um escândalo moral, virou apenas mais um indicador. No Sudão, ela tem nome, rosto e gênero. No resto do planeta, tem apenas estatística.

Se a humanidade ainda quer se considerar humana, deveria começar perguntando por que escolheu ignorar quem morre mais baixo na hierarquia global: mulheres negras, pobres, exaustas e invisíveis. A resposta talvez explique não só a tragédia do Sudão, mas a falência moral deste século.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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