Carlos acorda às 4h30. Antes mesmo do amanhecer, o som das motos ecoa pelas ruas estreitas da zona leste de São Paulo. Ele não precisa de despertador. O corpo já aprendeu o ritmo da urgência. Enquanto a mulher termina de passar o café, ele veste a jaqueta surrada, pega o celular e liga o aplicativo. A primeira corrida apita às 5h10. Destino: padaria no centro.
Ele dá um beijo na sua esposa e segue para o trabalho, enquanto ela acorda o filho mais velho, veste seu uniforme e o prepara para ir à escola. Ambos saem juntos: ele com destino à escola pública sucateada e ela para mais um dia de trabalho como diarista.
O mais novo, de quatro anos, ainda dorme enroscado na avó, que mora no mesmo quintal. “Minha mãe é quem segura tudo aqui”, diz Carlos. “Se ela não ficasse com eles, eu não teria como sair.”
A rotina se repete todos os dias. Café preto, moto velha e o mesmo pensamento: “será que hoje dá pra pagar o gás?”. Nos meses de chuva, o movimento cai e o medo aumenta. Se ele faltar um dia, não há substituto nem salário fixo.
O dinheiro entra e sai como as corridas: rápido, incerto e sempre menor do que o esperado.
Com o preço da gasolina oscilando e o custo da cesta básica em alta, o orçamento doméstico virou uma equação impossível. A mulher, diarista, passa pela mesma aflição: será que amanhã terei trabalho? Ambos estão na economia informal.
Na casa, o espaço é apertado. Um quarto, sala e cozinha conjugadas. O mais velho chega sozinho da escola na hora do almoço. Come o que a mãe preparou pela manhã para ele e depois faz as tarefas da escola sentado à mesa onde se prepara o jantar.
Quando ele não consegue concluir a tarefa sozinho, pede ajuda para os pais quando estes chegam do trabalho. Carlos tenta ajudá-lo à noite, mas geralmente está exausto. “Tem dia que eu não consigo nem conversar. Parece que o corpo pesa mais do que o capacete.”
No grupo de entregadores, os relatos se repetem: quedas, assaltos, falta de seguro e dívidas. Um colega perdeu a moto em um roubo. Outro, atropelado, ficou semanas sem renda. “A gente trabalha com medo, mas sem opção”, resume Carlos.
Ele conta que já pensou em desistir. Mas o que viria depois? Com 38 anos, sem ensino médio completo e sem registro em carteira há quase uma década, o mercado formal não o chama mais.

“Eles querem gente nova, com curso, com tudo em dia. Eu tenho só disposição.”, diz.
O bairro onde mora mistura casas simples e galpões abandonados. A poucos quilômetros dali, o metrô leva quem pode pagar a empregos estáveis no centro expandido.
Carlos observa o contraste todos os dias: “Eu entrego almoço que custa o que eu ganho no dia inteiro. A gente serve quem não sabe o preço da nossa vida.”
Igual a ele, milhares de Brasileiros seguem a mesma rotina. Segundo o IBGE, o Brasil tem mais de 39 milhões de trabalhadores informais, o que representa 37,8% da população ocupada — o maior contingente em quase dez anos. São entregadores, vendedores, diaristas e motoristas que sustentam parte do consumo urbano.
Mas essa força invisível da economia não aparece nas estatísticas de produtividade nem nas projeções de crescimento. Ela garante o movimento, mas sem amparo: nem previdência, nem férias, nem segurança.
O governo anuncia recuo no desemprego e alta nos indicadores de atividade. Na prática, boa parte dessa “melhora” vem justamente da expansão do trabalho sem carteira. A renda média continua estagnada, e o custo de vida cresce. O Brasil volta a empregar, mas fora da lei trabalhista.
A moto de Carlos é, ao mesmo tempo, seu instrumento de trabalho e seu risco de vida. “Se der problema, eu fico parado. E parado é fome.”
Ele já fez dezenas de entregas em um único dia e voltou com pouco mais de R$180. Desses, R$60 foram para a gasolina, R$20 para o almoço, e o restante mal cobriu as contas da semana.
Quando o filho pergunta por que ele sai tão cedo e volta tão tarde, Carlos responde: “Pra ganhar o dia”. Mas o dia nunca é inteiro. O tempo é dividido entre o trânsito, o medo e a tentativa de equilibrar o pouco que entra.
A mãe, aposentada com um salário mínimo, ajuda quando pode. “Ela diz que se preocupa comigo na rua, mas eu me preocupo é com ela, que toma conta dos meninos e ainda cuida da casa.”
No domingo, o descanso é relativo. Ele aproveita para lavar a moto e revisar os freios, isso quando não precisa trabalhar. O silêncio da rua é quebrado pelo som de um helicóptero policial. “É assim. Quando não é o trânsito, é a violência. A gente se acostuma com o barulho.”
Carlos é um entre milhões que sustentam, sem contrato e sem amparo, a engrenagem que mantém o país funcionando. A economia formal cresce devagar, mas a informal já virou regra. É nela que o Estado se esconde — e é dela que milhões de brasileiros tiram o sustento.
Enquanto economistas apontam a necessidade do ajuste fiscal para cumprir as metas de inflação, aumentando a Taxa Selic para desestimular o consumo, nas periferias o cálculo é outro: quanto custa o almoço, quanto sobra da gasolina, quanto tempo ainda dá para continuar rodando. O Brasil se vangloria do crescimento, mas o crescimento real mora onde o governo não chega.
Aos 38 anos, Carlos já não fala em futuro. Fala em dia seguinte. E no país que se orgulha de “não parar”, ele sabe que parar é um luxo.


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