A sequência de movimentos de Washington contra a Venezuela nas últimas semanas não é uma coleção de fatos isolados. O telefonema em que Donald Trump oferece “passagem segura” a Nicolás Maduro em troca de renúncia, o envio de um porta-aviões nuclear ao Caribe, o anúncio de fechamento do espaço aéreo venezuelano e a intensificação de ataques a embarcações sob a desculpa do narcotráfico formam um desenho coerente. Esse desenho tem nome na teoria política e na história concreta da região: imperialismo em disputa aberta por um ativo estratégico, o petróleo.
Desde que a Venezuela passou a usar suas reservas como instrumento de projeto nacional e não como apêndice das grandes petroleiras, entrou em choque com a lógica central do poder estadunidense.
Não é o “autoritarismo” que torna Caracas um alvo prioritário, mas o fato de ser o maior reservatório de petróleo comprovado do planeta, governado por um Estado que, com todas as contradições, não aceita subordinar sua política energética aos interesses dos Estados Unidos.
Quando Trump telefona para propor um exílio negociado, o que está em jogo não é o destino pessoal de Maduro, é a tentativa de encerrar um ciclo de insubordinação aberta na principal fronteira energética da América Latina.
O ultimato veio acoplado a uma escalada militar que não condiz com a narrativa oficial. Washington fala em combate ao narcotráfico, mas opera com porta-aviões, submarino nuclear, grupo de ataque e dezenas de aviões de guerra posicionados a poucos quilômetros da costa venezuelana.
Ao mesmo tempo, o comando americano contabiliza mais de vinte lanchas “suspeitas” afundadas e ao menos 80 mortos, sem apresentar provas de que se tratava de estruturas de cartel.
É a mesma estrutura usada no Panamá, no Iraque, no Afeganistão: constrói-se um inimigo difuso e, em cima dele, legitima-se qualquer ação que interesse ao centro do sistema.
O contra-ataque político de Caracas ajuda a entender a gravidade do quadro. Ao escrever à Opep, Maduro não busca apenas solidariedade retórica. Ele desloca o conflito para o coração do sistema energético mundial.

Quando a Venezuela denuncia que os Estados Unidos querem se apoderar de suas reservas “por meio de força militar letal” e alerta para o risco de desorganizar o equilíbrio do mercado de petróleo, está fazendo uma leitura correta do tabuleiro.
Uma intervenção aberta contra um dos maiores produtores de petróleo não afeta só Caracas, afeta preços, contratos, planejamento de investimentos e a própria arquitetura da transição energética global.
É justamente aí que a disputa se aprofunda. Os Estados Unidos entram na fase mais delicada de sua hegemonia. Perdem peso industrial para a Ásia, enfrentam concorrência tecnológica de China e União Europeia, veem o BRICS se expandir e assistem à erosão lenta da centralidade absoluta do dólar.
Nessa conjuntura, controlar fontes de energia continua sendo um mecanismo de poder. A Venezuela, com suas reservas, localização estratégica e relações com Rússia, China e outros atores do Sul Global, é um ponto de ruptura nessa engrenagem.
Se esse país mantiver soberania real sobre seu petróleo, abre-se um precedente perigoso para a lógica de centro e periferia que sustenta o capitalismo global.
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É por isso que o telefonema mediado por Brasil, Catar e Turquia não pode ser visto como gesto de boa vontade. Os três pontos de impasse revelados pelo Miami Herald vão todos na mesma direção.
Maduro teria pedido anistia ampla para ele e seu grupo, exigido manter controle das Forças Armadas em eventual transição e recusado a renúncia imediata.
Washington, por sua vez, queria saída rápida, comando desarmado e reorganização institucional tutelada. Em termos simples, uma mudança de regime sob coordenação externa. Quando isso não avança, a retórica militar endurece e o cerco psicológico se intensifica.
É nesse contexto que o pronunciamento de Maduro sobre “22 semanas de terrorismo psicológico” ganha densidade. Não se trata apenas de propaganda interna.
A combinação de ameaças de bombardeio, ataques no Caribe, anúncios unilaterais de fechamento do espaço aéreo e cobertura midiática que trata a intervenção como hipótese aceitável compõe uma forma de guerra que não se limita ao campo militar.
A população é bombardeada por sinais de que o país pode ser atacado a qualquer momento, investidores recuam, vizinhos são pressionados, e o governo é pintado como responsável por qualquer escalada. A mensagem que se tenta fixar é que a única saída “racional” seria a capitulação.
A resposta venezuelana, com mobilizações massivas em Caracas, juramentação de comandos populares e reforço da doutrina de defesa integral, mostra outra percepção da crise.
O governo lê corretamente que, se aceitar o enquadramento imposto por Washington, não estará apenas abrindo mão de um mandato, estará abrindo mão do controle sobre um recurso que define o lugar do país no sistema internacional.
A insistência em tratar a Venezuela como “ameaça” e não como Estado soberano revela o que a política externa estadunidense ainda não admite em público. Para o império, o problema não é o modelo político interno, é o fato de existir um governo disposto a usar o petróleo como instrumento de soberania e não como mercadoria subordinada.
A América Latina inteira está pendurada nesse fio. Se a operação de Trump for bem-sucedida, a mensagem para o continente será brutal. País que tenta controlar seus recursos estratégicos, diversificar alianças e resistir à pressão do centro será empurrado de volta à condição de peça intermediária no tabuleiro energético.

Se a Venezuela resistir, mesmo a um custo alto, torna-se referência concreta de que é possível enfrentar a combinação de sanções, guerra psicológica e ameaça militar sem ser imediatamente destroçada.
Por isso, o conflito atual não pode ser lido como um desvio episódico provocado pelo temperamento de Trump. Ele é a forma mais franca de um padrão que atravessa governos democratas e republicanos.
O método muda, a retórica muda, o grau de exposição muda. A estrutura, não. Há mais de um século, os Estados Unidos usam a força econômica e militar para garantir acesso privilegiado a recursos naturais na periferia.
A única novidade aqui é que a Venezuela, mesmo sob enorme asfixia, segue dizendo não. E quanto mais diz não, mais deixa à mostra que o problema não é Caracas ser “irracional”. O problema é o imperialismo não aceitar que um país periférico queira ser dono do seu próprio petróleo.











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