Em Caracas, as ruas já não eram mais apenas cenário de protestos — eram zonas de perigo calculado. Em 2014, manifestar-se era um ato de coragem e sobrevivência. A repressão, antes episódica, tornara-se política de Estado. Sob Nicolás Maduro, sucessor designado de Hugo Chávez, o poder passou a operar por meio do medo — não mais o medo da escassez, mas o medo do próprio Estado.
As promessas de continuidade da revolução bolivariana rapidamente se converteram em mecanismos de controle. O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que deveria atuar como árbitro constitucional, tornou-se uma extensão do Executivo.
A Assembleia Nacional, dominada pela oposição em 2015, foi esvaziada por decisões judiciais sucessivas até perder qualquer relevância. O chavismo transformara o aparato institucional em um sistema de autoproteção.
“Maduro consolidou o poder através da paralisia institucional”, analisou Phil Gunson, pesquisador da organização International Crisis Group. “O que antes era política agora é apenas controle.”
Para Maria Corina Machado, esse controle significou uma segunda cassação silenciosa. Após ter seu mandato de deputada revogado em 2014, ela foi impedida de se candidatar novamente por 15 anos — sob a acusação de apoiar “atos de sabotagem” e “colaboração com governos estrangeiros”. A medida, anunciada em 2023, selou a inabilitação de seu nome como candidata presidencial.
“Maduro usa o mecanismo legal como instrumento de perseguição”, afirmou Tamara Taraciuk Broner, da Human Rights Watch. “A repressão se tornou uma rotina administrativa.”
Mesmo fora das urnas, Maria Corina não abandonou a arena política. Reuniões passaram a ocorrer em casas discretas, em aplicativos criptografados e com horários variáveis para evitar infiltrações.
O governo reagia bloqueando o acesso a redes sociais e derrubando conexões de internet durante transmissões ao vivo de opositores. Segundo relatórios da Freedom House, entre 2018 e 2024, a Venezuela esteve entre os dez países mais censurados do mundo digital.
O cerco não era apenas físico. A propaganda oficial invadia escolas, sindicatos e até cultos religiosos, moldando o vocabulário político do país. Termos como “pátria”, “soberania” e “traidor” passaram a ter significados oficiais. A comunicação estatal, transmitida em rede obrigatória, repetia diariamente a narrativa da conspiração internacional.

“O regime entendeu que a censura sozinha não basta — é preciso substituir a verdade por outra versão da realidade”, explicou Luis Vicente León, presidente do instituto Datanálisis, em entrevista à BBC Mundo.
Enquanto o discurso interno endurecia, o isolamento externo crescia. As sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia aprofundaram a crise, mas também fortaleceram o controle interno de Maduro sobre o petróleo, o câmbio e o sistema alimentar.
Em troca de fidelidade política, o governo distribuía cestas básicas subsidiadas, conhecidas como CLAPs, às comunidades mais vulneráveis. Para muitos venezuelanos, a comida se tornara o último instrumento de participação política.
A oposição, fragmentada, buscava novos caminhos. Em 2019, o reconhecimento internacional de Juan Guaidó como presidente interino abriu uma breve janela de esperança, mas o impasse político terminou em frustração.
“O governo sobreviveu porque controlava o território e o medo”, avaliou Colette Capriles, cientista política da Universidad Simón Bolívar, ao El País. “A oposição operava com legitimidade simbólica, mas sem instrumentos reais de poder.”
Em meio ao desânimo coletivo, Maria Corina manteve um discurso intransigente. Rejeitou negociações intermediadas por outros países e insistiu que o chavismo só deixaria o poder pela pressão popular e internacional combinadas.
Esse posicionamento, considerado inflexível até mesmo por aliados, a isolou de parte das lideranças opositoras. Ainda assim, sua imagem crescia fora da Venezuela, onde era recebida como voz da democracia.
“Machado passou a ter mais influência no exílio do que dentro do país”, afirmou o jornalista Ewald Scharfenberg, editor do site investigativo Armando Info. “Ela se tornou símbolo, mas perdeu base.”
O governo, por sua vez, transformou a vigilância em política de sobrevivência. Agentes da polícia política (SEBIN) e das Forças de Ações Especiais (FAES) monitoravam residências, rastreavam reuniões e realizavam prisões-relâmpago.
Segundo dados da ONG Foro Penal, entre 2014 e 2024, mais de 15 mil pessoas foram detidas por motivos políticos, muitas sem processo formal.
As prisões de curta duração, seguidas de libertações condicionadas, funcionavam como recado coletivo. “É um sistema que reprime sem precisar encher as cadeias”, resumiu Margarita López Maya, historiadora da Universidade Central da Venezuela. “O medo é o principal instrumento de governo.”
Mesmo sob esse clima, novas formas de resistência surgiram: protestos localizados por energia elétrica, saúde e salários, conduzidos por sindicatos e movimentos civis sem bandeira partidária.

Maria Corina os apoiava à distância, transformando cada manifestação em um gesto simbólico de desobediência. Seu discurso passou a vincular a crise humanitária à repressão política, argumentando que “a escassez é também um ato de censura”.
No exterior, a comunidade venezuelana exilada — estimada em mais de sete milhões de pessoas segundo a ONU — tornou-se uma força política paralela.
Em Miami, Bogotá, Lisboa e Madrid, coletivos organizavam eventos, arrecadavam fundos e mantinham viva a pauta da redemocratização. Em 2024, parte desse grupo lançou uma campanha internacional intitulada “Venezuela Habla”, pedindo aos observadores permanentes da ONU no país.
Aos olhos da diplomacia, Maria Corina representava a face visível desse movimento globalizado. Sua voz era transmitida por videoconferências, gravada em celulares escondidos e retransmitida em podcasts independentes. Cada mensagem cruzava fronteiras digitais e chegava a Caracas como ruído proibido — mas ouvido.
“Ela conseguiu transformar o silêncio em presença”, definiu o sociólogo Ignacio Ávalos, da ONG Observatorio Electoral Venezolano. “Quando não podia falar dentro do país, ela falava de fora — e isso é o que mais incomoda um regime autoritário.”
O preço da resistência, porém, era alto. Em 2024, seu principal assessor foi preso por “instigação ao ódio”; outros deixaram o país. As reuniões da oposição passaram a ocorrer em casas rurais, sem energia, para escapar da vigilância digital. A paranoia substituiu a esperança como rotina política.
A repressão, longe de ser exceção, tornara-se a regra de funcionamento. Maduro sobreviveu politicamente porque aprendeu a administrar o medo — um medo estável, constante, eficiente. E nesse tabuleiro, Maria Corina tornou-se o símbolo de uma oposição que resiste mesmo sem armas, sem partidos e, muitas vezes, sem país.
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“A Venezuela é um Estado que não cai porque já está no chão”, ironizou o analista Michael Penfold, da Universidad de los Andes, em debate no Carnegie Endowment for International Peace. “O que se move é apenas o pó da resistência.”
Nos anos seguintes, a convivência entre repressão e resignação consolidou o regime como uma democracia formal sem liberdade real. Os mecanismos de eleição, imprensa e parlamento existiam, mas apenas como vitrines. A política havia se tornado uma coreografia ensaiada.
“A Venezuela vive um estado de exceção permanente, mas normalizado”, sintetizou Phil Gunson. “É o autoritarismo com aparência de rotina.”
No exílio e nas sombras internas, Maria Corina continuava a escrever comunicados, a se pronunciar em fóruns internacionais e a manter viva a memória do país que um dia acreditou na revolução. Sua luta já não era apenas contra o chavismo, mas contra o esquecimento.
Nos próximos capítulos, veremos como o colapso econômico e o êxodo em massa transformaram essa resistência política em um movimento de diáspora — e como Maria Corina se tornou, ao mesmo tempo, voz e ausência de uma Venezuela espalhada pelo mundo.
Capítulo anterior – Maria Corina: das raízes liberais à ruptura com o chavismo.
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