Putrajaya (Malásia) — O presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou, neste sábado (25/10), a primeira visita oficial de um chefe de Estado brasileiro à Malásia em 30 anos para lançar uma frente de inserção política e econômica do Brasil no Sudeste Asiático: durante o encontro com o primeiro-ministro Anwar Ibrahim foram assinados sete instrumentos de cooperação e abertas seis novas possibilidades de exportação para produtos brasileiros, em uma combinação de acordos em tecnologia, ciência e cadeias agroindustriais que o governo identifica como chave para reduzir a vulnerabilidade externa do país.
“Eu não vim aqui apenas com o interesse de vender ou de comprar. Vim dizer ao primeiro-ministro Anwar Ibrahim que temos possibilidade de mudar o mundo”, disse Lula em coletiva em Putrajaya.
No mesmo pronunciamento, o presidente vinculou essa ambição a uma crítica direta às estruturas de governança global: “As instituições multilaterais criadas para tentar evitar que essas coisas acontecessem pararam de existir. Hoje, o Conselho de Segurança da ONU e a ONU não funcionam mais.”
A combinação entre retórica política e medidas concretas define o caráter da visita. No curto prazo, a Malásia autorizou a importação ou retomada de mercados para carnes de frango, pescados de captura e cultivo, gergelim, melão, maçã e ovos em pó, além de antecipar missão de auditoria em 16 plantas brasileiras de carne suína — medidas que prometem efeitos imediatos sobre fluxos de exportação e volumes comerciais.
No médio prazo, o Planalto aposta que os acordos em semicondutores, pesquisa espacial, ciência e inovação tecnológica podem servir como nó de atração para investimentos e transferência de tecnologia.
A iniciativa insere-se numa leitura estratégica mais ampla do governo: diversificar parceiros e fortalecer laços com economias emergentes para recuperar margem de manobra política no sistema internacional.
A Malásia é membro da ASEAN, bloco que tem elevado sua centralidade econômica; o comércio entre Brasil e ASEAN cresceu significativamente nas últimas décadas e o fluxo bilateral com a Malásia totalizou US$ 5,8 bilhões em 2024, com superávit favorável ao Brasil.
Para Brasília, ampliar presença na Ásia não é apenas ampliar vendas: é reconfigurar posicionamentos, disputar padrões e tentar inserir o país em cadeias de maior conteúdo tecnológico.

A escolha de instrumentos (semicondutores, inovação e cooperação acadêmica) revela uma ambição de não apenas acessar mercados, mas criar condições para que produtos com maior valor agregado e serviços tecnológicos possam emergir na pauta exportadora brasileira.
É uma aposta alinhada à ideia de reindustrialização verde — combinando capacidade produtiva com exigências ambientais — que o governo vem promovendo como pilar de sua política econômica externa.
Politicamente, o tom da viagem é explícito. Ao criticar a efetividade das instituições multilaterais, Lula procura construir uma narrativa na qual o Brasil atua como articulador do Sul Global, reclamando espaços de decisão e oferecendo alternativas de governança.
A aproximação com Anwar Ibrahim, que descreveu o encontro como “um engajamento entre amigos que compartilham convicções e ideais”, reforça a tentativa de projetar o Brasil como parceiro político duradouro na Ásia.
O tom amistoso se converte em ativo diplomático: as tratativas passam a incluir temas de cultura, educação e ciência, ampliando o alcance da cooperação para além do comércio.
Leia Mais
-
Social-democracia: o modelo que guiou a transição democrática, mas nunca saiu do papel
-
Brasil cria o “SUS da Educação” e redefine o pacto federativo no ensino
-
Brasil leva políticas sociais à ONU e busca liderança no combate à desigualdade global
-
Lula tenta conter a crise de segurança que expõe os limites do pacto federativo
No mesmo movimento, Lula conectou a agenda econômica à pauta ambiental. Disse que a COP30, em Belém, “será a COP da verdade”, defendendo que compromissos climáticos deixem de ser declarações simbólicas e se transformem em políticas concretas — uma forma de vincular o discurso de desenvolvimento à exigência de resultados mensuráveis.
Essa estratégia tem dois objetivos complementares: atrair investimentos alinhados a padrões ambientais e, ao mesmo tempo, fortalecer mecanismos internacionais que cobrem o cumprimento das metas climáticas. A lógica é coerente com a narrativa do governo de que o Brasil pode atuar como ponte entre desenvolvimento e sustentabilidade.
O desafio, porém, é estrutural. A pauta comercial com a Malásia ainda é dominada por commodities — minério e petróleo seguem respondendo por boa parte das exportações —, e a captura de ganhos tecnológicos dependerá de políticas industriais consistentes e de incentivos que transformem cooperação em transferência efetiva de tecnologia.
Assinaturas de memorandos são um primeiro passo; o teste real será a capacidade do governo de converter acordos em programas de investimento, parcerias industriais e formação técnica que aumentem o conteúdo tecnológico dos bens exportados e gerem mão-de-obra qualificada.
A conversão de promessas em resultados concretos é o que definirá se a política externa se traduzirá em desenvolvimento interno — e, portanto, em credibilidade internacional.
Ao estreitar laços com países do Sudeste Asiático, o Brasil tenta reduzir a dependência de mercados tradicionais e ampliar sua voz em fóruns plurais como BRICS, G20 e, agora, a própria ASEAN.
Essa triangulação funciona como alavanca diplomática: permite negociar regras, investimentos e transferência de tecnologia em blocos onde o poder de definição ainda está em disputa.
Em essência, a operação de Putrajaya mistura cálculo econômico e esforço de reputação internacional. Há ganhos imediatos — mercado e protocolos sanitários — e uma tentativa de capitalizar politicamente a presença para pressionar por reformas multilaterais e por maior autonomia estratégica.
Se a visita se transformar em investimentos industriais concretos e em um aumento sustentável do conteúdo tecnológico das exportações, a leitura do governo de que “é possível mudar o mundo” pode encontrar eco na prática; se ficar apenas no simbolismo e em autorizações comerciais pontuais, a consequência será mais limitada: retórica diplomática com eficácia econômica restrita.
A conta final, portanto, não é apenas diplomática. É uma equação de política industrial, capacidade de atração de investimentos e articulação internacional — onde a abertura de mercados é condição necessária, mas insuficiente, para o objetivo maior de inserir o Brasil de forma mais qualificada nas cadeias globais do século XXI.










Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.
Ainda não há comentários nesta matéria.