Genebra (Suíça) — A Organização das Nações Unidas fez um alerta inédito sobre os riscos éticos e sociais da neurotecnologia — campo que conecta diretamente o cérebro humano a máquinas e sistemas digitais. Segundo especialistas da Unesco, o avanço rápido dessa área sem regulação adequada ameaça princípios fundamentais como a autonomia individual e a liberdade de pensamento, pilares da dignidade humana.
A neurotecnologia já deixou de ser ficção científica. Dispositivos capazes de traduzir impulsos cerebrais em comandos eletrônicos têm mudado a vida de pessoas com deficiências graves, oferecendo novas formas de comunicação e autonomia.
Um dos exemplos citados pela ONU ocorreu em Genebra: um jovem com síndrome do encarceramento conseguiu discursar em uma conferência das Nações Unidas apenas com o uso de uma interface cérebro-computador, que transformou seus pensamentos em palavras reproduzidas com a própria voz.
Mas o mesmo avanço que devolve voz a quem não pode falar também cria uma fronteira delicada entre esperança e risco. Fora do campo médico — onde o uso é rigidamente controlado — o crescimento acelerado de dispositivos capazes de captar e interpretar sinais cerebrais tem levantado preocupações éticas e de direitos humanos.
Aparelhos de uso cotidiano já coletam dados sobre frequência cardíaca, padrões de sono e reações emocionais. Sem regulação, essas informações podem ser comercializadas ou compartilhadas sem consentimento, abrindo caminho para uma nova forma de vigilância: a leitura e a manipulação de pensamentos.
Dafna Feinholz, chefe interina de Pesquisa, Ética e Inclusão da Unesco, alertou que o que está em jogo é a “liberdade de pensamento, a autonomia e a privacidade mental”.
Segundo ela, a “batalha pela privacidade mental” já está sendo perdida, em um contexto em que milhões de pessoas expõem voluntariamente suas vidas a plataformas controladas por poucas empresas de tecnologia.
Feinholz afirma que os riscos vão além da coleta de dados. Algumas tecnologias já são capazes de inferir estados mentais e até alterar estruturas neurológicas, influenciando emoções e comportamentos.

“Quanto mais se rende ao poder dessas ferramentas, mais se é dominado por elas”, disse. Para a pesquisadora, é essencial que a humanidade continue no comando do desenvolvimento tecnológico, garantindo que o ser humano permaneça no centro das decisões.
A especialista defende que a transparência e a responsabilização sejam princípios básicos também na neurotecnologia.
“Quando se come num restaurante, não é preciso saber cozinhar, mas se a comida faz mal, existe o direito de reclamar. O mesmo deve valer para quem usa dispositivos que interagem com o cérebro. Deve existir uma cadeia de responsabilidade”, comparou.
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A Unesco aprovou recentemente uma recomendação global sobre a ética da neurotecnologia, que orienta governos na criação de políticas e legislações nacionais para proteger a dignidade humana, a privacidade e a liberdade de pensamento. O documento pede o uso responsável dessas tecnologias, assegurando que as pessoas mantenham o controle sobre sua própria mente e corpo.
As diretrizes incluem mecanismos legais e éticos para supervisionar o setor, proteger dados pessoais e avaliar impactos sobre os direitos humanos. O objetivo é evitar que a chamada “revolução cerebral” reproduza o mesmo padrão de desigualdade e desinformação que marcou outras ondas tecnológicas.
Feinholz resume o desafio com clareza: “A revolução cerebral pode trazer grandes benefícios à humanidade, mas só se for guiada pela ética.” Para a ONU, o maior risco não está na máquina, mas na ausência de regras que garantam que o último espaço verdadeiramente livre — a mente humana — continue pertencendo a quem a habita.











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