Brasília — O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) propôs a criação de dois tributos globais — sobre grandes fortunas e sobre lucros corporativos — como fonte permanente de financiamento para a reparação das dívidas climáticas e a transição energética. A proposta, apresentada no estudo “Operacionalizando a justiça climática”, defende que países e empresas que mais contribuíram para o aquecimento global devem arcar com a maior parte dos custos da mitigação e da adaptação.
O documento parte da abordagem de igualdade per capita (EPC), que calcula quanto cada país ultrapassou sua “cota justa” de emissões desde 1990. De acordo com essa metodologia, o planeta dispunha de um orçamento de 1,36 trilhão de toneladas de CO₂ para manter o aquecimento global em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
O Ipea conclui que as economias industrializadas já consumiram boa parte desse limite e acumularam um passivo climático expressivo. Os Estados Unidos aparecem como o maior devedor, com 326% de emissões acima de sua cota, o equivalente a cerca de US$ 48 trilhões. O Brasil, quando consideradas as emissões associadas ao desmatamento, teria superado seu limite em 68%.
Para o Ipea, o desequilíbrio histórico torna urgente a criação de mecanismos permanentes de compensação financeira. O estudo propõe dois instrumentos principais: um imposto anual de 2% sobre fortunas superiores a US$ 100 milhões e um imposto corporativo mínimo global de 15% sobre os lucros de grandes multinacionais, em linha com as regras GloBE coordenadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo G20.
Somados, esses tributos poderiam gerar mais de US$ 500 bilhões por ano, destinados ao financiamento de programas de mitigação, transição energética e infraestrutura resiliente em países de baixa renda.
A proposta é apresentada em um contexto de retração do multilateralismo e de aumento da pressão fiscal global. O estudo observa que os gastos militares mundiais cresceram 9,4% entre 2023 e 2024 — o maior salto desde 1988 — e que a expansão da extrema-direita em países centrais tem reduzido o espaço político para novos compromissos ambientais.
Essa combinação de fatores torna mais difícil mobilizar fundos públicos de forma tradicional e, ao mesmo tempo, reforça a necessidade de alternativas progressivas de arrecadação. Nesse cenário, a tributação de grandes fortunas e lucros extraordinários é tratada pelo Ipea como uma medida de justiça econômica, não apenas ambiental.
O estudo também destaca que, embora enfrentem resistências políticas, esses impostos não são inevitavelmente impopulares. Em países desenvolvidos, cresce o apoio à ideia de que os ultrarricos devem contribuir mais para financiar a transição ecológica, movimento que se reflete em campanhas de milionários favoráveis à taxação de grandes patrimônios.

O texto lembra que experiências recentes de coordenação tributária internacional, como o acordo da OCDE para o imposto mínimo global, demonstram que há espaço político para iniciativas desse tipo quando há pressão social suficiente e cooperação institucional.
Além das medidas centrais, o Ipea lista opções complementares para fortalecer o financiamento climático. Entre elas, a taxação de setores de alta emissão e baixa tributação — como aviação, transporte marítimo e combustíveis fósseis —, a criação de contribuições solidárias sobre lucros extraordinários e a realocação dos subsídios fósseis, que somaram cerca de US$ 7 trilhões em 2022.
Iniciativas como a Força-Tarefa de Contribuições Solidárias Globais, copresidida por Barbados, França e Quênia, são citadas como exemplos de como instrumentos tributários podem ampliar a previsibilidade e a escala das fontes de financiamento climático.
O estudo reforça que o princípio da justiça climática deve ser entendido como uma forma de justiça restaurativa. Nesse modelo, a compensação não busca punir, mas corrigir danos, priorizando países de baixa renda e populações em situação de vulnerabilidade.
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Os recursos arrecadados poderiam ser direcionados para projetos de reflorestamento, adaptação agrícola, infraestrutura de baixa emissão e fortalecimento institucional em países que historicamente contribuíram menos para a crise, mas sofrem seus efeitos de forma desproporcional.
A redução da pobreza também é tratada como componente essencial da adaptação, pois amplia a capacidade das sociedades de lidar com eventos climáticos extremos.
Ao situar a proposta em um contexto global de desigualdade e disputa por recursos, o Ipea sugere que a presidência brasileira do G20 em 2026 pode servir de plataforma para introduzir a ideia de uma governança fiscal verde.
Vincular tributação internacional e justiça climática, segundo o estudo, seria uma forma de recolocar o debate ambiental dentro da lógica da política econômica e da redistribuição de riqueza. Em outras palavras, transformar o combate às mudanças climáticas em um projeto de reorganização produtiva e social em escala mundial.
A publicação do estudo marca um movimento relevante no pensamento econômico brasileiro: a tentativa de dar concretude ao conceito de justiça climática, transformando-o em modelo operacional de política pública.
O Ipea propõe que o debate sobre a transição ecológica abandone a retórica voluntarista e adote instrumentos fiscais capazes de alterar fluxos reais de recursos, corrigindo desequilíbrios acumulados ao longo de décadas.
Num cenário de crise ambiental, desigualdade e escassez fiscal, o texto reforça uma tese simples e contundente: a transição verde só será justa se for, também, redistributiva.










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