LIMA, Peru — No dia 10 de outubro, o Congresso peruano aprovou por 122 votos a favor e nenhum contra a vacância da presidente Dina Boluarte, alegando “incapacidade moral permanente”. A decisão foi tomada sem que a mandatária comparecesse à sessão para se defender. Minutos depois, o presidente do Congresso, José Jerí, assumiu interinamente o comando do país e deve permanecer no cargo até julho de 2026. O Peru, mais uma vez, amanheceu com um novo presidente — o sétimo em menos de uma década.
O episódio sintetiza um problema que se repete com precisão cronometrada: um Executivo politicamente isolado, um Congresso que acumula poder de veto e uma Constituição que oferece margens amplas para o uso político da moralidade.
A cada ciclo de crise, a estrutura se repete. A vacância se torna mecanismo rotineiro de disputa, e não exceção institucional. O que preocupa em um sistema democrático.
A Constituição peruana, no artigo 113, inciso 2, prevê que o presidente pode ser destituído por “incapacidade moral permanente”. O texto, porém, não define o conceito nem estabelece critérios objetivos, o que transforma o dispositivo em uma arma política de uso flexível.
“O presidencialismo peruano opera sob uma distorção: o Congresso impõe uma ditadura parlamentar anticonstitucional”, afirmou o jurista César Landa, ex-presidente do Tribunal Constitucional, em entrevista à revista Politai.
Em outro artigo, Landa alertou que “a vacância por incapacidade moral permanente tem sido utilizada abusivamente”, defendendo que a falta de parâmetros legais transforma a cláusula em instrumento de conveniência política.
Ao longo dos últimos anos, a mesma justificativa foi usada para afastar Pedro Pablo Kuczynski, Martín Vizcarra e Pedro Castillo — todos derrubados com base na noção de incapacidade moral. Em cada caso, a expressão ganhou nova interpretação, moldada às circunstâncias do momento.
Nenhuma decisão judicial foi capaz de restringir o alcance do dispositivo, e o Congresso consolidou a prerrogativa de julgar, segundo seu próprio critério, o que é moralmente aceitável para o chefe de Estado.
A queda de Boluarte repete também o roteiro político de um país sem coalizões estáveis. O sistema partidário fragmentado impede qualquer governo de construir maioria duradoura. Bancadas que sustentavam o Executivo em um mês podem votar pela vacância no mês seguinte, como ocorreu agora.

Entre os partidos que apoiaram a destituição estavam Renovação Popular, Aliança para o Progresso e Fuerza Popular — legendas que, meses antes, compunham a base aliada. A fluidez das alianças é tão constante que a política peruana tornou-se imprevisível e refém de cálculos imediatos.
Em reportagem da Reuters, analistas destacaram que Boluarte se soma à lista de presidentes “fugazes” do país, vítimas de um sistema em que o Legislativo se converteu em árbitro supremo do poder.
Sem mecanismos de estabilidade, o Executivo governa sob a ameaça permanente de destituição. Qualquer crise — política, moral ou econômica — pode ser suficiente para deflagrar uma moção de vacância.
A justificativa formal para a destituição da presidente foi o agravamento da crise de segurança pública, marcada por aumento de homicídios e casos de extorsão em Lima e nas principais cidades.
Leia Mais
-
Corte de juros na Nova Zelândia acende o debate sobre a política monetária internacional
-
Banco da Itália pressiona por alívio imediato da dívida do Sul Global
-
Crise política na França: o que está por trás da queda-relâmpago do primeiro-ministro
-
Banco Mundial eleva PIB da China e país acelera reservas de petróleo
O estopim político ocorreu após um tiroteio em um show na capital, episódio que provocou forte reação popular e desgaste do governo. No Congresso, o caso foi apresentado como prova de que Boluarte havia “perdido o controle do país”.
O argumento moral foi reforçado por denúncias conhecidas como Rolexgate, que apontavam a posse de relógios de luxo não declarados. A controvérsia simbolizou o distanciamento entre a presidente e a população e alimentou a percepção de corrupção.
A combinação de escândalo, impopularidade e insegurança ofereceu ao Parlamento o pretexto ideal para acionar novamente a cláusula de vacância.
O impacto econômico da instabilidade é visível. O ex-ministro da Economia Pedro Francke já havia advertido, em entrevista ao El Comercio, que:
“a moção de vacância gera incerteza e é negativa para o país; a incerteza sempre tende a deter os investimentos”.
Segundo ele, cada mudança de governo interrompe políticas e posterga decisões de longo prazo. O Banco Central de Reserva del Perú estimou que os fluxos de investimento direto estrangeiro caíram cerca de 15 % entre 2023 e 2024, reflexo do ambiente político volátil.
O Peru é hoje um exemplo extremo de um fenômeno que se espalha pela América Latina: democracias presidenciais com parlamentos fortes e fragmentados, incapazes de sustentar governos até o fim do mandato.
Casos semelhantes já ocorreram no Paraguai, em 2012, e no Brasil, em 2016, com mecanismos legais diferentes, mas com lógica parecida — a substituição de lideranças eleitas por meio de alianças circunstanciais e maiorias conjunturais.
A sucessão de quedas peruanas revela que o problema não está apenas nos líderes, mas no desenho institucional. Com regras frouxas e partidos personalistas, o país vive em um ciclo de desconfiança que se retroalimenta: presidentes impopulares enfrentam congressos igualmente desacreditados, e o resultado é uma democracia em estado permanente de crise.
José Jerí, que assumiu o cargo após a vacância, prometeu “restaurar a estabilidade” e “declarar guerra ao crime”. Mas a história recente sugere que, sem mudanças constitucionais profundas, seu governo enfrentará as mesmas forças que derrubaram os anteriores. A confiança pública está esgotada.
Ao final, a destituição de Dina Boluarte é menos um capítulo isolado e mais uma demonstração de que o sistema político peruano se tornou refém de si mesmo. A cada vacância, o poder muda de mãos — mas o país permanece preso ao mesmo enredo.