Washington — A reconstrução de Gaza dominou as reuniões anuais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial nesta semana, em Washington. As instituições elevaram a estimativa de custos para US$ 70 bilhões e admitiram que, mais do que um desafio financeiro, a crise é de governança: falta um poder político reconhecido, capaz de administrar os recursos, fiscalizar o gasto e garantir que o dinheiro internacional se transforme em reconstrução social.
Desde fevereiro, quando um relatório conjunto do Banco Mundial, da ONU e da União Europeia fixou o custo inicial em US$ 53 bilhões, a escala da destruição aumentou.
Técnicos confirmam que há mais de 60 milhões de toneladas de entulho — o equivalente a 13 pirâmides de Gizé — e que boa parte da infraestrutura civil, energética e sanitária foi completamente perdida.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento calcula que apenas a remoção dos destroços levará anos e exigirá corredores seguros, combustível regular e controle ambiental, condições ainda distantes de serem cumpridas.
A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, afirmou que a reconstrução depende da estabilidade e da previsibilidade política.
“É importante sustentar uma paz duradoura; isso beneficiará toda a região. Haverá um dividendo da paz para todos”, disse.
A fala sintetizou o que circulou nos bastidores do encontro: sem uma arquitetura institucional confiável, os bilhões prometidos podem se perder em burocracia e disputas de poder.
O Banco Mundial, por sua vez, propôs um fundo fiduciário multilateral que reuniria doações bilaterais e garantias de risco para o setor privado, sob supervisão técnica internacional. O modelo já foi usado em conflitos anteriores, mas com resultados variados.

Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, alertou em entrevista recente que “reconstruções dependentes de doadores podem reforçar desigualdades se não houver controle local”. Segundo ele, o desafio de Gaza será transformar a ajuda em autonomia, não em dependência.
Em Genebra, o representante do PNUD, Jaco Cilliers, resumiu o obstáculo físico. “Sem a remoção de escombros, a ajuda não chega, a reconstrução não começa e o retorno digno é impossível.”
O depoimento reflete uma preocupação recorrente das agências humanitárias: a falta de acesso e segurança nas rotas terrestres. Apesar do cessar-fogo, comboios seguem restritos e o envio de combustível é irregular, dificultando a operação de máquinas pesadas e o transporte de insumos.
A economista palestina Hanan Ashrawi afirmou, em entrevista à rede Al-Quds, que “a reconstrução precisa ser conduzida pelos palestinos, e não imposta de fora”.
Segundo ela, o risco é que a Faixa de Gaza se torne “um laboratório de modelos externos de desenvolvimento”, sem voz local nas decisões sobre prioridades e contratos.
A crítica ecoa discussões dentro do próprio Banco Mundial sobre como assegurar transparência e inclusão comunitária num território fragmentado.
Comparações históricas ajudam a dimensionar o desafio. A reconstrução do Iraque, iniciada em 2003, mobilizou US$ 88 bilhões — cerca de US$ 3,5 mil per capita. Na Síria, as estimativas somam US$ 250 bilhões, o que equivaleria a US$ 2,8 mil por habitante.
Em Gaza, a conta atual supera US$ 6 mil por pessoa, a mais alta entre todos os casos recentes de guerra urbana, segundo levantamento do Instituto Internacional de Finanças. O valor reflete tanto a densidade populacional quanto a destruição completa de redes de energia e água, que em outras guerras permaneceram parcialmente ativas.

A diretora-geral da Organização Mundial do Comércio, Ngozi Okonjo-Iweala, afirmou que o cessar-fogo abre uma “janela política de reconstrução”, mas reconheceu que ela é estreita.
“Esperamos que leve à próxima fase e que isso aconteça de forma pacífica”, disse.
Em privado, diplomatas europeus ouvidos em Washington admitem que a criação de um mecanismo de governança conjunta será decisiva para destravar os aportes. Sem esse arranjo, o fluxo de capital tende a ficar fragmentado entre doadores que agem de forma autônoma.
O impacto econômico ultrapassa as fronteiras da Faixa de Gaza. No Egito, o bloqueio do comércio e a pressão migratória aumentam os custos de segurança e reduzem a movimentação no Canal de Suez.
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Em Israel, a normalização comercial dependerá de um acordo estável que reduza o risco político e permita reativar exportações agrícolas e de energia. No Líbano e na Jordânia, o conflito ampliou o déficit energético e a inflação de alimentos, afetando populações já vulneráveis.
Relatório recente do Banco Mundial sobre o Oriente Médio estima que o PIB de Gaza encolheu mais de 80% em 2024, enquanto a inflação ultrapassou 400%. Sem reativar a economia interna, o território permanecerá dependente de transferências externas e de ajuda humanitária.
Para o FMI, a tarefa é dupla: reconstruir a infraestrutura e restaurar a capacidade administrativa do governo local. Técnicos defendem a criação de um sistema de auditoria independente e a digitalização dos fluxos de pagamento para reduzir desvios e sobreposições.
Richard Gowan, analista do International Crisis Group, avaliou que a reconstrução será “um teste de credibilidade para as instituições multilaterais”.
Segundo ele, o risco é que Gaza repita o ciclo de promessas não cumpridas do pós-guerra do Iraque: grandes aportes iniciais, seguidos de paralisia e fragmentação institucional.
“Sem legitimidade local, nenhuma reconstrução se sustenta”, afirmou.
Ao fim desta semana, o diagnóstico em Washington convergia para uma conclusão incômoda: o dinheiro existe, mas a governança ainda não.
FMI e Banco Mundial tentam equilibrar urgência humanitária e cautela fiscal, mas sabem que o destino dos bilhões prometidos dependerá da política — e da capacidade do sistema internacional de transformar ajuda em desenvolvimento, não em dependência.
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