Rio de Janeiro (RJ) — O estudo “Engrenagem Seletiva: o tratamento penal dos crimes de drogas no Rio de Janeiro”, produzido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revela que o sistema penal do Rio de Janeiro pune de forma sistematicamente mais dura jovens negros e moradores de favelas. A análise de 3.392 processos de 2022 e 2023 mostra que eles são maioria entre réus e condenados pela Lei de Drogas, passam mais tempo presos e enfrentam maior probabilidade de condenação quando a ocorrência é registrada em territórios periféricos. O relatório indica que a desigualdade racial não é desvio, mas padrão que estrutura toda a cadeia penal.
Os dados mostram que 69% dos réus, 74,7% dos denunciados pelo Ministério Público e 77,4% dos condenados são negros, proporção muito acima da composição racial do estado.
A pesquisa também mediu o impacto direto da desigualdade no resultado final das sentenças: enquanto pessoas brancas condenadas por crimes relacionados às drogas receberam penas médias de 810 dias, pessoas negras receberam 1.172 — quase um ano a mais. O CESeC conclui que, conforme o processo avança, ele “se torna cada vez mais negro”, revelando uma engrenagem que amplifica desigualdades a cada etapa.
A porta de entrada dessa engrenagem é a abordagem policial. Em grande parte dos registros, a justificativa usada pelos agentes é “comportamento suspeito”, categoria ampla e subjetiva que historicamente funciona como álibi para intervenções direcionadas contra jovens negros.
Em 41% dos casos analisados, não havia sequer explicação formal para a abordagem. O relatório aponta ainda que denúncias anônimas e entradas em domicílio sem mandado são frequentes, especialmente em favelas, onde 20% das invasões ocorreram sem respaldo judicial.
Esse padrão inicial se conecta diretamente ao desfecho das ações. A pesquisa mostra que quase 90% das condenações por tráfico e associação se baseiam essencialmente na palavra do policial, amparadas pela antiga redação da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio, que autorizava a condenação apoiada exclusivamente no depoimento da corporação.
Mesmo após revisão do texto em 2024, o CESeC conclui que a lógica foi mantida: na prática, o relato policial continua sendo a principal pedra de sustentação das sentenças.
O relatório também detalha como o território opera como evidência tácita. Quando a sentença menciona que a ocorrência ocorreu em favela ou comunidade, a taxa de condenação sobe para 76,5% — e chega a 79,3% quando há referência ao controle armado local.

Para os pesquisadores, esse padrão demonstra que certos espaços produzem presunção de culpabilidade, transformando o CEP num marcador de risco processual. A pesquisa afirma que a Justiça adota, consciente ou inconscientemente, uma hierarquia de territórios que define quem merece punição e quem é passível de absolvição.
Outro ponto central é a distribuição desigual de alternativas penais. Segundo o CESeC, pessoas negras têm 43% menos chance de receber transação penal do que pessoas brancas, diferença que cresce conforme o recorte socioeconômico.
Entre réus de maior renda, arquivamentos e absolvições chegam a 90%, tornando o benefício praticamente redundante. O relatório ressalta que, nesses segmentos, o sistema penal raramente avança ao ponto de considerar punição, mostrando que a seletividade se manifesta tanto pelo excesso quanto pela ausência de rigor.

A pesquisa também revela que a natureza da substância apreendida influencia a imputação inicial. A maconha é predominante nos casos de uso, enquanto a cocaína domina as acusações de tráfico, e a distinção entre usuário e traficante varia conforme o perfil socioeconômico de quem é abordado.
Em áreas ricas, pequenas porções raramente resultam em prisão; em áreas pobres, situações semelhantes são enquadradas como crime.
O CESeC conclui que a seletividade do sistema penal carioca não é fruto de desvios isolados, mas de uma lógica que atravessa polícia, Ministério Público e Judiciário.
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Raça, classe e território moldam desde a suspeição inicial até o tamanho da pena, configurando um percurso que transforma desigualdade histórica em condenação concreta.
“Ser negro, jovem, pobre e morar em favela leva a uma quase certeza de condenação pela Lei de Drogas”, afirma o relatório.
Para além das estatísticas, o estudo escancara um modelo de punição que concentra repressão nos mesmos grupos sociais há décadas, sem redução da violência e sem melhoria na segurança pública.
O resultado é um sistema prisional superlotado por pessoas presas com pequenas quantidades de droga, enquanto a criminalidade organizada, a corrupção policial e o tráfico transnacional seguem intactos.
Ao evidenciar essas distorções, a pesquisa traz à tona o debate sobre a necessidade urgente de revisão da política de drogas e de reformas profundas nas práticas policiais e judiciais.
Num estado marcado por desigualdades crônicas, o estudo do CESeC demonstra que a neutralidade do sistema penal é mais promessa do que realidade — e que enfrentar o racismo estrutural na Justiça não é demanda acadêmica, mas condição para reconstruir a legitimidade das instituições e garantir cidadania plena a quem historicamente só recebeu o peso da lei.











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