Katia Marko do Brasil de Fato – Chega ao Brasil Evangelho da Revolução, o primeiro documentário de longa-metragem dedicado à história da Teologia da Libertação na América Latina. Após circular por diversos festivais e estrear em cinemas de cinco países europeus, o filme passará por várias capitais brasileiras e estará disponível em múltiplas plataformas.
A primeira exibição, na próxima quarta-feira (26), será na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro. Dias 27 e 28, estará em São Paulo. Haverá uma sessão dia 28, às 18h30, na Casa da Solidariedade (Rua Gravi, 60, ao lado do Metrô Praça da Árvore), onde é realizado o Cursinho Vito Giannotti. No dia 29, às 20h, terá apresentação no Instituto Educar, na Fazenda Annoni, em Pontão (RS). E no domingo (30), estará em Porto Alegre, às 16h, no Cinemateca Capitólio. Todas as sessões terão debate com o diretor francês François-Xavier Drouet (veja agenda completa ao final).
Segundo Drouet, o filme nasceu da urgência de preservar a memória e transmitir a história desses protagonistas, muitos dos quais já estavam idosos ou haviam falecido.
O documentário busca desconstruir a ideia de Karl Marx de que a religião é o ópio do povo, partindo do reconhecimento de que, embora a Igreja Católica tenha tido responsabilidade em atos de opressão histórica, sempre houve cristãos que se opuseram à injustiça com base na sua fé, sendo a TL um capítulo dessa longa história.

Drouet detalha como a TL inspirou bispos, padres e leigos a se engajarem em lutas políticas e sociais, tendo um papel fundamental de “guarda-chuva” para militantes durante as ditaduras na América Latina. Frei Betto, Leonardo Boff e o padre Júlio Lancellotti são alguns dos brasileiros entrevistados.
No Brasil, a TL foi o alicerce das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e teve uma influência crucial na fundação de movimentos populares, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e também do Partido dos Trabalhadores (PT).
A seguir, confira a entrevista exclusiva com François-Xavier Drouet sobre o processo de produção, as perseguições sofridas pelo movimento e a atualidade da Teologia da Libertação. O cineasta também comenta sobre o lançamento do filme, que incluirá uma sessão na Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, como um gesto de reciprocidade com aqueles que participaram da história.
Brasil de Fato RS: Como surgiu a ideia de realizar este documentário? Qual a sua relação com a Teologia da Libertação?
Durante muito tempo, eu fui anticlerical, como boa parte da esquerda na França. Isso tem a ver com o fato de que, lá, a luta entre a República e a igreja tem sido muito dura desde a Revolução Francesa. Para a minha geração, a América Latina foi uma fonte de inspiração política, por exemplo, através da luta zapatista, do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, e também do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Contudo, eu não percebia a influência da Teologia da Libertação no engajamento de muitos latino-americanos, pois tinha esses preconceitos anticlericais. Comecei a me interessar pelo assunto ao ler a obra de Michel Löwy, um sociólogo franco-brasileiro de inspiração marxista, que escreveu muito sobre o tema. Isso me apaixonou.
Então, eu quis conhecer protagonistas das lutas políticas do século 20 que se engajaram em nome da fé. Primeiro na França, porque lá há muitos religiosos, religiosas, padres e leigos que foram para a América Latina, e também porque acolhemos muitos exilados da ditadura a partir da década dos anos 1960.
Percebi que era urgente fazer esse filme para preservar a memória
Depois, fiz várias viagens de reconhecimento ao México, à América Central, ao Brasil, ao Chile. Esses encontros me comoveram muito e percebi que ninguém ainda havia feito um filme histórico e retrospectivo sobre a importância da Teologia da Libertação na América Latina. Muitos protagonistas dessa história já estavam bem idosos e muitos já haviam falecido.
Percebi que era urgente fazer esse filme, por um lado, para preservar a memória e, por outro lado, porque acredito que essas pessoas têm coisas a nos ensinar e transmitir sobre os desafios do presente.
No filme, você questiona a ideia de que a religião é o ópio do povo. Como essa questão é abordada?
Eu tive uma educação católica muito conservadora. Eu me aborrecia muito durante a missa. Na minha família, a fé cristã baseava-se mais no medo da morte do que no amor ao próximo. Era uma fé cheia de superstições, muito distante da razão. Para mim, perder a fé foi realmente uma libertação. Logo, aderi à ideia de Karl Marx de que a religião é o ópio do povo.
O que é muitas vezes verdade. Se você olhar a história da América Latina, a Igreja Católica tem uma responsabilidade enorme no genocídio dos povos indígenas, no sistema da escravidão, na opressão que os povos sofreram durante séculos, devido à sua cumplicidade com o poder. Para mim, a religião só podia rimar com alienação e nunca com emancipação.

Por isso, eu não tinha reparado que sempre na história do cristianismo houve cristãos que se opuseram à injustiça com base na sua fé. Essa é uma atitude de fidelidade ao evangelho.
A Teologia da Libertação (TL) é um capítulo dessa longa história. Quando descobri esse movimento e compreendi o lugar que ele ocupava na história política da América Latina, percebi que eu não tinha entendido nada. Assim, essa frase de Marx é o ponto de partida do filme, que será desconstruído ao longo do documentário e dos encontros com os personagens.
A Teologia da Libertação inspirou bispos, padres e leigos a se engajarem em lutas políticas e sociais e até em revoluções, como a Sandinista na Nicarágua. Qual a atualidade dessa história? Por que lançar esse filme hoje?
Ao contrário do que se costuma dizer, a Teologia da Libertação nunca foi condenada pelo Vaticano; não é uma heresia. A tal ponto que até o papa João Paulo II disse uma vez que a TL era boa, útil e necessária. Mas, sim, ela foi perseguida e marginalizada. Os teólogos e as teólogas foram censurados e sofreram um tipo de assédio por parte do Vaticano.
Os 40 anos de pontificado de João Paulo II e de Bento XVI remodelaram profundamente a face da igreja na América Latina, porque nomearam bispos conservadores e se apoiaram na Opus Dei e na Legião de Cristo no México, a fim de diminuir a influência da Teologia da Libertação.
Eu queria contar essa história comum a toda América Latina para ajudar a criar esse sentimento de uma história comum
Consequentemente, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) deixaram de ser apoiadas e foram afastadas da igreja oficial. A TL não existe mais na escala e na intensidade que existia em seu auge, no final dos anos 1970.
Contudo, ela continua viva em muitas paróquias e em algumas dioceses, por exemplo, em Chiapas. Acima de tudo, ela marcou profundamente o panorama político e social através de organizações muito ativas, como o MST, e continua a inspirar muitos militantes para quem a fé e o compromisso com as lutas sociais não podem ser separados.
A memória desse movimento precisava ser preservada e transmitida, pois os protagonistas dessa história na segunda metade do século 20 já estão idosos e muitos já faleceram. Além disso, na América Latina, os povos conhecem muito mal a história dos outros povos da região. Eu queria contar essa história comum a toda América Latina para ajudar a criar esse sentimento de uma história comum, um pouco no modelo dos livros de Eduardo Galeano.
No Brasil, a Teologia da Libertação foi o alicerce das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que seriam um dos pilares na fundação do Partido dos Trabalhadores, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por que isso foi possível em plena ditadura militar?
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) baseavam-se na Teologia da Libertação, mas a TL também se baseava nas práticas das CEBs, pois a TL é uma reflexão sobre práticas que às vezes existiam muito antes do seu nascimento. Ela teve um papel muito importante na luta contra as ditaduras em toda a América Latina.
A igreja desempenhou um papel de guarda-chuva para as organizações sociais e para militantes. Isso ocorreu pela simples razão de que era o único espaço que as ditaduras não podiam controlar totalmente, embora muitas vezes pudessem contar com a cumplicidade das hierarquias.

Às vezes, esse papel de guarda-chuva não foi suficiente, como em El Salvador ou na Guatemala, onde os regimes militares podiam assassinar catequistas pelo simples fato de terem uma Bíblia ou um livro de hinos. Eles não hesitaram em assassinar uma figura tão importante como Óscar Romero, arcebispo de São Salvador.
A igreja desempenhou um papel de guarda-chuva para as organizações sociais e para militantes
No Brasil, os militares não ousaram ir tão longe na repressão como na América Central. No contexto dos últimos anos da ditadura, eles não conseguiam mais conter a ira do povo. As organizações sociais podiam contar com o apoio de grandes figuras do clero, como Hélder Câmara, Paulo Evaristo Arns e muitos outros. Isso dava legitimidade às lutas e abriu espaços.
O MST é filho do trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanhava as ocupações de terra no final da década de 1970. O Partido dos Trabalhadores (PT) também se fundou com base no modelo das CEBs. Lula disse que era filho da Teologia da Libertação. Portanto, foi uma influência muito importante.
O documentário mescla imagens de arquivo com entrevistas de expoentes da Teologia da Libertação no Brasil, em El Salvador, na Nicarágua e no México, como Frei Betto, Leonardo Boff e o padre Júlio Lancellotti. Também traz imagens de D. Óscar Romero, bispo salvadorenho, assassinado durante a celebração de uma missa em 1980, a mando da extrema direita de seu país. Como foi esse processo de produção do documentário?
Este filme é uma coprodução franco-belga. O financiamento provém essencialmente de subsídios públicos desses dois países e também de um financiamento coletivo (crowdfunding).
Infelizmente, não conseguimos vender o projeto para canais de televisão ou plataformas. No entanto, isso nos deu mais liberdade, pois assumimos uma forma mais cinematográfica, com a ideia de que o filme fosse exibido essencialmente na Tela Grande.

Passei 2 anos escrevendo o filme, viajando muito para conhecer os personagens e me documentar. Tivemos que adiar as filmagens devido à pandemia, sendo necessário esperar que as restrições de viagem fossem suspensas.
O grande cineasta chileno Patrício Guzmán, que mora em Paris, me ajudou e me ofereceu arquivos. Ele me disse que eu levaria 10 anos para fazer este filme, mas no final levou apenas 5 anos, sendo mais breve do que ele esperava.
Como será o lançamento no Brasil? E por que lançar o filme na Fazenda Annoni?
Eu organizei uma turnê em cerca de 10 cidades em todo o Brasil, graças ao apoio da Cooperação Cultural Francesa. Outras exibições em outros lugares já estão sendo organizadas. Eu disponibilizo o filme gratuitamente para todos os grupos militantes e as CEBs que queiram organizar exibições.
Ele também será exibido em pelo menos três plataformas, incluindo o ICL. É importante que as pessoas descubram o filme em grupo e possam discuti-lo, e por isso não quero que ele esteja disponível gratuitamente no YouTube.
Eu disponibilizo o filme gratuitamente para todos os grupos militantes e as CEBs que queiram organizar exibições
A quarta sessão desse tour vai ser na Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul. Gravei uma sequência lá com a participação do padre Arnildo Fritzen, que acompanhou a ocupação desde o início.
Para mim, é um enorme prazer e também um gesto de reciprocidade vir mostrar o filme àqueles que participaram nele. Estou muito ansioso por descobrir a reação deles e do público brasileiro em geral.
Sessões com debate e presença do cineasta
26/11 – Rio de Janeiro – Cinemateca do MAM – 18h30
27/11 – São Paulo – Cinemateca Brasileira – 19h30 (com Frei Betto)
28/11 – São Paulo – Casa da Solidariedade – 18h30
29/11 – Fazenda Annoni/MST (RS) – Instituto Educar – 20h
30/11 – Porto Alegre – Cinemateca Capitólio – 16h
02/12 – Salvador – Cine Glauber Rocha – 19h30
04/12 – Recife – Cinema da Fundação – 19h
05/12 – João Pessoa – Cine Bangüê – 19h
08/12 – Brasília – Cine Cultura – 19h
09/12 – Ouro Preto – Museu da Inconfidência – 18h30
11/12 – Belo Horizonte – Cine Santa Tereza – 17h
13/12 – Petrópolis – Cinemaxx Bauhaus – 17h (com Leonardo Boff)







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