A economia criativa alcançou maturidade no Brasil. O setor, que engloba atividades culturais, artísticas, tecnológicas e de design, já responde por 3,59% do PIB nacional, movimentando R$ 393,3 bilhões e empregando 1,26 milhão de trabalhadores formais, segundo o Mapeamento da Indústria Criativa 2025 da Firjan. Nas bordas das grandes cidades, esse movimento assume contornos próprios: a cultura periférica se consolidou como vetor de trabalho e renda, mas ainda enfrenta os mesmos gargalos estruturais que historicamente limitam o desenvolvimento urbano brasileiro.
Festivais como o Estéticas das Periferias, que em 2025 chegou à sua 15ª edição reunindo coletivos culturais de todas as regiões da cidade de São Paulo, revelam a dimensão econômica desse fenômeno.
Em torno de saraus, batalhas de rima, feiras de moda e exibições audiovisuais, circulam serviços, alimentação, transporte e produtos criativos que movimentam a economia local. Estimativas de institutos independentes apontam que as periferias brasileiras já injetam cerca de R$ 200 bilhões por ano em consumo e produção cultural.
Embora informal e fragmentado, esse mercado cresceu em paralelo à retração de empregos tradicionais, oferecendo alternativas de sustento para jovens e trabalhadores sem acesso ao mercado formal.
Os salários médios da economia criativa, de R$ 4,8 mil mensais — quase o dobro da média nacional — indicam o potencial de valorização do setor, mas a renda não chega de forma homogênea aos territórios periféricos.
Enquanto profissionais de design, publicidade e audiovisual atuam em estruturas consolidadas, coletivos culturais das quebradas ainda dependem de editais públicos esporádicos, apoio de marcas e venda direta em redes sociais.
O resultado é um mercado criativo dual: de um lado, alta renda concentrada em centros urbanos; de outro, enorme vitalidade produtiva nas periferias, com baixa formalização e infraestrutura precária.
Nos últimos anos, políticas públicas começaram a reconhecer essa diferença. O Prêmio Periferia Viva, lançado pelo Ministério das Cidades e pela Secretaria Nacional de Periferias, é um exemplo recente de fomento direto a iniciativas culturais e comunitárias.

Em São Paulo, o Edital de Fomento à Cultura da Periferia, em sua décima edição, mantém linhas permanentes de apoio a coletivos e espaços culturais nas zonas sul, leste e norte da capital.
Esses programas representam um avanço em relação ao modelo anterior, concentrado em grandes produtoras e equipamentos centrais. Ainda assim, o volume de recursos e a burocracia continuam sendo barreiras que afastam grupos pequenos, especialmente nas regiões mais carentes de infraestrutura digital e bancária.
A economista e professora da UFF, Ana Carolina Fernandes, que pesquisa o papel da economia criativa nas periferias urbanas, aponta que a falta de investimento público contínuo impede o amadurecimento do setor.
“Há uma potência produtiva enorme, mas sem política de crédito e sem redes locais de distribuição, os coletivos ficam presos à lógica da sobrevivência”, diz.
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Fernandes defende a criação de fundos regionais de fomento, simplificação tributária e programas de compras públicas de arte e conteúdo cultural, que poderiam alimentar escolas, centros culturais e canais públicos de comunicação.
A digitalização também transformou o alcance das produções periféricas. Pesquisas da UFF e da UnB mostram que artistas e influenciadores das periferias acumularam mais de 300 milhões de visualizações em redes sociais apenas em 2024.
Essa visibilidade tem potencial econômico, mas a monetização permanece concentrada nas plataformas, sem retorno proporcional para quem produz. É um modelo que reforça a dependência de algoritmos e reduz o impacto local da circulação de renda.
Para a socióloga Juliana Ribeiro, da Unicamp, “o desafio é transformar influência em infraestrutura”. Ela lembra que cada show, live ou sarau é também uma cadeia de trabalho: som, luz, transporte, figurino, segurança.
“A cultura periférica já é uma indústria, falta tratá-la como tal”, conclui.
O governo federal prevê repasses para mais de cinco mil municípios em 2025 destinados à modernização de equipamentos culturais, mas a ausência de um programa específico de crédito para produtores periféricos ainda é um gargalo.
A criação de linhas de microcrédito cultural, defendida por economistas do Ipea e do BNDES, poderia integrar o sistema financeiro formal a essa economia popular, reduzindo a informalidade e ampliando o impacto fiscal e social.
A cultura periférica tem mostrado que desenvolvimento não se mede apenas pelo PIB, mas pela capacidade de gerar pertencimento, identidade e trabalho.
Em bairros antes marcados pela ausência de Estado, coletivos culturais se tornaram políticas públicas espontâneas, organizando território, educação e renda.
A economia criativa já provou seu peso macroeconômico; agora, o desafio é fazer com que essa riqueza se distribua também na base — onde criatividade e sobrevivência sempre caminharam juntas.
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