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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Brasília (DF) — A Defensoria Pública da União concluiu, em nota técnica divulgada nesta semana, que o mecanismo de consulta livre, prévia e informada previsto na Convenção 169 da OIT não se aplica aos povos indígenas isolados. Para o órgão, o próprio isolamento — quase sempre resultado de fuga, perseguição e massacres — constitui uma forma inequívoca de recusa a qualquer tipo de intervenção externa. A posição, que reforça práticas já adotadas por órgãos de proteção, busca consolidar um entendimento jurídico capaz de impedir pressões econômicas e políticas sobre territórios tradicionalmente vulneráveis.

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A consulta prévia é um dos pilares internacionais de defesa dos povos indígenas e comunidades tradicionais, garantindo que decisões do Estado não sejam tomadas sem diálogo com quem será diretamente afetado.

Mas, no caso dos povos isolados, esse diálogo é impossível por razões que ultrapassam a técnica: trata-se de populações que evitam o contato como mecanismo de sobrevivência após séculos de violências, epidemias e expulsões.

Ao reconhecer que o isolamento é uma negativa legítima, a DPU busca impedir que o instrumento seja deturpado para justificar projetos que ameaçam a integridade desses grupos.

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A conclusão foi apresentada pelo defensor público Renan Sotto Mayor, titular do recém-criado Ofício de Povos Isolados e de Recente Contato, formalizado em outubro. Ele argumenta que a consulta é fundamental, mas inaplicável quando a manifestação do povo é justamente a recusa absoluta ao contato.

A interpretação está alinhada com resoluções anteriores da Funai, do Ministério dos Povos Indígenas, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e do Conselho Nacional de Justiça, que reconhecem a impossibilidade de aplicar o procedimento a grupos isolados.

A nota técnica tem peso político e jurídico relevante. Em um país onde interesses minerários, madeireiros e do agronegócio avançado pressionam territórios protegidos, o entendimento funciona como barreira institucional contra tentativas de flexibilização.

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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A criação do Ofício, por sua vez, emerge como resposta tardia, mas necessária, a um histórico de omissão estatal — evidenciado de forma trágica no Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados em 2022, após denunciarem ameaças e violações na região.

Especialistas ouvidos em condição de anonimato que atuam com povos isolados consideraram a nota um reforço importante ao arcabouço jurídico de proteção.

Para o Observatório dos Povos Indígenas Isolados, cada manifestação oficial que reconhece o princípio do não contato fortalece a segurança jurídica necessária para impedir retrocessos.

Trata-se, segundo a entidade, de um avanço civilizatório para um Estado que historicamente ignorou, perseguiu ou exterminou populações inteiras em nome de interesses econômicos.

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A discussão é central para compreender casos emblemáticos como o do povo Tanaru, extinto após massacres na década de 1990. Seu último sobrevivente, conhecido como o “índio do buraco”, viveu 26 anos sozinho em uma área de floresta até sua morte, em 2022.

A trajetória simboliza o impacto de séculos de violência que empurraram inúmeros povos para o isolamento como única forma de preservação física e cultural.

Segundo levantamento da organização não governamental Survival International, mais de 90% dos povos isolados do mundo vivem sob ameaça direta de atividades extrativistas legais e ilegais.

Com 115 povos isolados identificados, o Brasil é o país que mais concentra grupos nessa condição, ampliando a responsabilidade estatal e reforçando a necessidade de rigor absoluto na proteção territorial.

Dessa forma, um único contato mal conduzido — seja por equipes oficiais despreparadas, seja por garimpeiros, grileiros ou madeireiros — pode resultar em genocídio por contaminação, conflito armado ou destruição de habitat. A autodeterminação, portanto, não é apenas princípio jurídico; é mecanismo básico de sobrevivência.

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A nota da DPU também destaca a urgência de reduzir burocracias, fortalecer políticas de proteção territorial e apoiar iniciativas de educação popular, como pré-vestibulares comunitários que historicamente têm formado lideranças indígenas e periféricas.

O documento avança ao consolidar diretrizes que já vinham sendo aplicadas de forma fragmentada, mas agora ganham unidade institucional.

Ao reforçar que a vontade dos povos isolados se manifesta no próprio ato de se manterem afastados, a DPU contribui para cristalizar uma compreensão mais ampla: defender esses grupos não é um gesto de preservação abstrata, mas uma reparação histórica diante de um país que ainda convive com os efeitos de ciclos de extermínio.

Em tempos de pressões econômicas renovadas sobre territórios indígenas, o posicionamento funciona como proteção jurídica e afirmação civilizatória — um marco de responsabilidade do Estado brasileiro com aqueles que sobreviveram apesar dele.

Redação IA Dinheiro

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A Redação IA Dinheiro produz reportagens e conteúdos com foco em democracia, desigualdade e políticas públicas.

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