Consciência Negra
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Celebrado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra marca a morte de Zumbi dos Palmares e simboliza mais de três séculos de resistência à escravidão, às violências estatais e às desigualdades impostas à população negra no país. A data, oficializada nacionalmente em 2003, tornou-se um marco para refletir sobre o passado colonial e sobre as cobranças que essa herança continua impondo ao Brasil contemporâneo, onde raça e desigualdade seguem profundamente entrelaçadas.

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A escolha do 20 de novembro como referência histórica é um gesto político. Ao contrário do 13 de maio — data associada à assinatura da Lei Áurea e frequentemente criticada por reforçar narrativas que desresponsabilizam o Estado — o Dia da Consciência Negra reposiciona o protagonismo de homens e mulheres que lutaram pela liberdade muito antes da abolição.

Entre eles, figuras como Zumbi e Dandara, líderes do Quilombo dos Palmares, cujas trajetórias simbolizam a recusa à lógica colonial e o direito coletivo à autonomia.

Desde sua criação, a data expandiu-se do calendário escolar para a vida pública. Virou pauta de movimentos sociais, tornou-se referência em pesquisas sobre desigualdade e entrou na agenda política como termômetro da democracia brasileira.

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Desde 2023 quando tornou-se feriado nacional, a data transformou-se em dia de reflexão coletiva, e o seu significado passou a extrapolar as efemérides, operando como um espelho incômodo que evidencia ainda o abismo que existe entre brancos e negros no Brasil.

Levantamentos recentes reforçam essa desigualdade histórica. A Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostra que pessoas negras representam 71% dos brasileiros abaixo da linha da pobreza e recebem, em média, 40% menos que pessoas brancas.

Já o Atlas da Violência 2024, do IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que negros são 78,9% das vítimas de mortes por intervenção policial, evidenciando como raça segue determinando não apenas as condições de vida, mas também os riscos enfrentados diariamente.

Esses dados evidenciam que a escravidão, embora abolida formalmente há mais de 130 anos, deixou marcas institucionais que continuam moldando a realidade brasileira.

O Dia da Consciência Negra funciona, portanto, como um ponto de partida para discutir não apenas a memória da resistência, mas o legado político dessa resistência.

Consciência Negra
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Zumbi e Dandara representam a reivindicação por liberdade, comunidade e dignidade — princípios que continuam a ecoar nos debates sobre políticas públicas, reparação histórica e democratização de espaços sociais frequentemente monopolizados por elites brancas.

A data convoca o país a enfrentar contradições que permanecem vivas: desde a segregação urbana até a sub-representação da população negra em carreiras de prestígio, passando pela violência policial desproporcional.

Ao mesmo tempo, o 20 de novembro ganhou relevância em meio ao crescimento de discursos negacionistas sobre racismo. Grupos conservadores têm buscado relativizar a escravidão, atacar políticas de cotas e deslegitimar movimentos negros, alegando uma falsa “ideologização” das discussões raciais.

Essa disputa evidencia que o combate ao racismo não se limita a combater preconceitos individuais, mas envolve questionar estruturas que naturalizam privilégios e reproduzem desigualdades. O Dia da Consciência Negra, nesse sentido, se torna um contraponto civilizatório: um convite a retomar debates que parte da sociedade tenta silenciar.

A data também desperta reflexões sobre memória. O Brasil preserva poucos monumentos que celebram heróis negros, ao mesmo tempo em que conserva homenagens a figuras históricas que defenderam a escravidão.

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A inversão simbólica proposta pelo 20 de novembro — reconhecer Palmares como projeto político e não como exceção histórica — funciona como instrumento de reorientação da identidade nacional. Ela sugere que o país só poderá enfrentar suas desigualdades se reconhecer a centralidade da população negra em sua formação econômica, cultural e social.

Na educação, o impacto é significativo. A obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana avançou após a institucionalização da data, embora de forma desigual.

A falta de formação adequada, de materiais didáticos consistentes e de políticas estruturantes faz com que o tema ainda dependa da iniciativa de professores e escolas. Mesmo assim, o 20 de novembro impulsionou debates antes invisíveis e abriu espaço para projetos pedagógicos que confrontam narrativas racistas naturalizadas no cotidiano escolar.

Nos últimos anos, o Dia da Consciência Negra ganhou também um papel econômico e cultural. Festivais, editoras independentes, coletivos de artistas e empreendedores negros passaram a ocupar o período com agenda intensa de atividades — não apenas como celebração identitária, mas como afirmação de protagonismo em setores da economia historicamente fechados para corpos negros.

Essa potência cultural funciona como contraponto às estatísticas de exclusão e demonstra a vitalidade das redes periféricas de criação e inovação.

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A consolidação do 20 de novembro no calendário revela também como o Estado brasileiro ainda avança de forma irregular na tarefa de enfrentar as desigualdades herdadas da escravidão. Enquanto alguns países transformaram esse passado em políticas permanentes de memória e inclusão, o Brasil oscila entre iniciativas pontuais e longos períodos de estagnação.

O resultado é uma democracia que ainda convive com estruturas que naturalizam a exclusão racial e tratam reparação como gesto simbólico, não como compromisso de Estado.

O 20 de novembro, portanto, funciona como lembrete de que a superação do racismo estrutural exige continuidade, não apenas atos pontuais.

Diante desse contexto, a pergunta que orienta a data permanece: o que o Brasil deve aos milhões de pessoas que construíram este país sob violência e desumanização?

A resposta não cabe apenas na esfera simbólica. Implica discutir desigualdades econômicas, presença política, acesso a direitos, reparação cultural e transformação das instituições. Zumbi e Dandara não são apenas personagens históricos — são referências de um projeto de país que ainda não se realizou plenamente.

Ao final, o Dia da Consciência Negra cobra do Brasil exatamente aquilo que nos falta: memória honesta, políticas estruturantes e a coragem coletiva de enfrentar desigualdades profundas. Mais do que celebrar a resistência, a data nos recorda que o futuro democrático brasileiro depende do enfrentamento direto ao racismo que segue moldando nosso presente.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista e editor-chefe da IA Dinheiro. Produz reportagens e conteúdos com foco em economia, democracia, desigualdade e políticas públicas.

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