Desinformação
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Brasília — A liberdade de imprensa nas Américas atravessa uma das fases mais delicadas desde a redemocratização do continente. Relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), divulgado durante sua 81ª Assembleia Geral em Punta Cana, aponta um quadro de deterioração generalizada, com aumento de perseguições, censura indireta e manipulação digital em países de diferentes matizes políticos — dos governos de direita à esquerda.

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Segundo a entidade, as restrições ao jornalismo independente não se limitam mais à violência física ou à censura judicial. O novo fenômeno é a desinformação sistemática, amplificada por redes sociais e pela opacidade de algoritmos que favorecem conteúdos polarizadores.

“A mentira viaja mais rápido que os fatos”, disse o presidente da SIP, o salvadorenho José Roberto Dutriz. “E a manipulação corrói a confiança social.”

O relatório descreve uma convergência preocupante: a repressão direta, ainda presente em regimes autoritários como Cuba e Nicarágua, agora se combina à erosão institucional de democracias consolidadas. Argentina, Colômbia, Peru e até Canadá aparecem na lista de países onde jornalistas enfrentam processos judiciais, assédio digital ou pressões econômicas.

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O caso mais simbólico, segundo a SIP, ocorre nos Estados Unidos, tradicionalmente referência de liberdade de imprensa. A entidade critica a escalada de ataques verbais e institucionais promovidos pelo presidente Donald Trump contra veículos de comunicação, incluindo ameaças de cassação de licenças de rádio e TV e exigências de submissão prévia de reportagens ao Departamento de Defesa.

O episódio levou dezenas de repórteres a devolverem suas credenciais de acesso ao Pentágono. Para Dutriz, “o que acontece em Washington repercute em toda a América”.

O relatório também destaca que a ameaça à imprensa tornou-se transnacional, impulsionada por novas formas de controle da informação. Entre elas estão a vigilância digital, o uso de inteligência artificial para fabricar narrativas falsas e campanhas de intimidação coordenadas nas redes sociais — muitas delas patrocinadas por agentes públicos ou econômicos.

No Brasil, o documento reconhece avanços recentes em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que têm garantido o exercício da liberdade de expressão, mas alerta para o aumento de ações judiciais nas instâncias inferiores e para o uso de processos de indenização como ferramenta de pressão.

A presidenta da Comissão de Liberdade de Imprensa da SIP, Martha Ramos, mencionou o caso da jornalista Rosane de Oliveira, condenada em primeira instância após divulgar informações públicas sobre a remuneração de magistrados.

Além do assédio judicial, a SIP aponta “campanhas orquestradas” contra profissionais e veículos de comunicação, muitas delas conduzidas por políticos e influenciadores digitais. Essas ofensivas, segundo o relatório, buscam desacreditar o jornalismo e criar um ambiente de medo. Ramos advertiu ainda para o risco de o STF ampliar as penas por crimes contra a honra de servidores públicos, medida que poderia inibir a crítica legítima e o escrutínio de agentes do Estado.

Em contraste com o cenário continental, o ranking global da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) mostra uma leve melhora no Brasil, que subiu da 63ª para a 47ª posição. A organização ressalta que, embora a violência física contra jornalistas tenha diminuído, o ambiente de desinformação e o assédio digital continuam sendo obstáculos à plena liberdade de imprensa.

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Nos Estados Unidos, o movimento é inverso: o país caiu para a 57ª posição, reflexo da crescente polarização política e da desconfiança da população em relação à mídia. Para a RSF, a politização das instituições públicas e o enfraquecimento do apoio à imprensa independente representam “um risco estrutural à democracia”.

O relatório da SIP sintetiza uma preocupação central: a liberdade de imprensa deixou de ser um tema apenas corporativo — tornou-se um indicador do estado de saúde das democracias.

Em um continente marcado por desigualdades e tensões políticas, proteger o jornalismo é proteger o direito dos cidadãos à verdade. E é justamente essa verdade, lenta e cada vez mais vulnerável, que hoje enfrenta a concorrência brutal da mentira em alta velocidade.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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