Rio de Janeiro (RJ) — Uma pesquisa divulgada nesta quarta-feira (19) mostra que 52,2% das pessoas negras no Brasil não sabem como denunciar casos de racismo, revelando um abismo informacional que impede milhões de brasileiros de acessar direitos já garantidos por lei. O levantamento, realizado pelos institutos Orire e Sumaúma, indica ainda que menos da metade dos entrevistados conhece legislações antidiscriminatórias, apesar de o país possuir normas avançadas no papel. O dado expõe uma contradição central: o Estado cria instrumentos de combate ao racismo, mas não garante que aqueles que mais precisam saibam utilizá-los.
O estudo ouviu 423 pessoas pretas e pardas de todas as regiões do país entre julho e setembro, por meio de formulário online. Além da falta de informação, os pesquisadores identificaram descrença no sistema de Justiça.
Apenas 20,3% dos entrevistados acreditam que uma denúncia será levada adiante, e somente 1,7% afirmam ter recebido algum tipo de retorno após acionar as autoridades. A desconfiança não é abstrata: 83,9% dos que sofreram racismo ou injúria racial nunca registraram boletim de ocorrência.
Mesmo em um país onde 55,5% da população é negra, segundo o Censo 2022, o levantamento revela que mecanismos formais de denúncia continuam inacessíveis para a maioria.
Seis em cada dez participantes afirmam já terem sido vítimas de racismo ou injúria racial durante deslocamentos urbanos, mas a experiência cotidiana da violência não se converte em registro formal. O problema não é a inexistência de leis, mas a distância entre o que está escrito e o que chega à ponta.
É nessa distância que opera o que a fundadora do Instituto Orire, Thais Bernardes, chama de “abismo informacional”. Segundo ela, o caminho da denúncia é confuso, burocrático e pouco acessível, o que desencoraja vítimas antes mesmo de chegarem à delegacia.
Para quem enfrenta racismo diariamente, a dúvida não é apenas “como denunciar?”, mas “vale a pena denunciar se o sistema não me retorna?”.
A percepção de Thais encontra eco nos dados. O desconhecimento se combina com a falta de resposta institucional e com práticas de atendimento marcadas pelo despreparo e pelo racismo institucional.
Quando vítimas relatam que são desencorajadas, ridicularizadas ou ignoradas, a mensagem enviada pelo Estado é que a proteção existe no texto da lei, mas não na rotina das instituições.

Esse descompasso ajuda a explicar por que legislações como a Lei Caó, de 1989 — que define o racismo como crime imprescritível e inafiançável — e o Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, são ainda pouco acionadas pela população que deveriam proteger.
A existência de leis é um avanço histórico, mas sem orientação, formação de profissionais, campanhas públicas e canais eficientes, elas permanecem longe da prática cotidiana.
A pesquisa também revela que 77,1% dos entrevistados dizem saber a diferença entre racismo e injúria racial. O dado mostra que a compreensão conceitual avança, mas que isso não se traduz em capacidade de navegação institucional. Em outras palavras: a vítima sabe identificar a violência, mas não sabe — ou não acredita — que o sistema está preparado para acolhê-la.
O levantamento foi acompanhado de um guia prático produzido pelo projeto “Percepções sobre Racismo e os Caminhos para a Justiça”, com orientações jurídicas elaboradas pela rede Black Sisters in Law.
O material explica como registrar ocorrência, reforça que não é necessário advogado e detalha possibilidades de denúncia em delegacias comuns, especializadas ou pela internet. A iniciativa busca suprir uma lacuna histórica deixada pelo próprio poder público.
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Para enfrentar a subnotificação e ampliar a confiança, é preciso mais que campanhas esporádicas. É necessário investir em formação antirracista de profissionais da segurança pública, do Judiciário e das ouvidorias, além de criar canais de denúncia que não revitimem quem já chega fragilizado. Sem isso, a informação correta não vira acesso; e o acesso não vira Justiça.
A pesquisa evidencia um ponto decisivo: o racismo no Brasil não se sustenta apenas na violência direta, mas também na desinformação, na burocracia e na ausência de retorno institucional. Quando o caminho para denunciar é desconhecido e a resposta do Estado é frágil, a impunidade deixa de ser acidente e se torna política.
Para um país que celebra o Dia da Consciência Negra, o desafio não é apenas lembrar sua história, mas garantir que milhões de brasileiros saibam como exigir, na prática, o direito de viver sem discriminação.











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