O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta terça-feira (23), em cerimônia no Palácio do Planalto, um decreto que reconhece a cultura gospel como manifestação cultural brasileira, em meio a uma estratégia do governo para reduzir rejeição e tentar uma aproximação do público evangélico, hoje majoritariamente de direita.
O gesto não resolve, por si só, a relação do governo com o segmento religioso, mas ajuda a mudar a chave da conversa. Lula não fala apenas de cultura; fala de reconhecimento simbólico, pertencimento e respeito a um público que por anos foi empurrado para a trincheira da oposição por uma narrativa que associou o petismo à hostilidade à fé.
Ao transformar a cultura gospel em manifestação cultural formalmente reconhecida, o governo tenta retirar o tema do terreno da guerra religiosa e colocá-lo no campo da cidadania e da pluralidade cultural brasileira.
Há um cálculo político evidente — e ele não é escondido. De acordo com pesquisas realizadas ao longo do ano, a rejeição do presidente junto ao público evangélico chega a 59,4%, ou seja, é maior quando comparada a pessoas ligadas a outras religiões.
Em vista disso, o governo vem tentando uma aproximação com lideranças evangélicas, em uma tentativa de dizer que Estado laico não significa Estado antirreligioso e que políticas públicas podem dialogar com a fé sem se submeter a ela.
Esse movimento vem sendo construído em encontros discretos, aproximação de lideranças e um papel relevante de Janja, que atua como ponte afetiva e política.
A presença feminina nesse diálogo não é detalhe; é estratégia em um segmento onde mulheres são numericamente maioria, mas politicamente sub-representadas. Reuniões, escuta e reconhecimento simbólico ajudam a quebrar o estereótipo do governo “hostil” e colocam Lula em postura de diálogo ativo, não de enfrentamento.

Há também um efeito colateral visível: o enfraquecimento de figuras que apostaram na radicalização permanente. Quanto mais Lula ocupa espaços de conversa, menos eficaz é o discurso que tenta sustentar a ideia de que o governo seria inimigo da fé.
A disputa, aqui, deixa de ser religiosa e volta a ser política. E política, no campo evangélico, nunca foi homogênea, apesar da narrativa construída nos últimos anos.
Isso não significa ausência de riscos. Parte da base progressista pode questionar excesso de concessões. Setores laicos podem temer proximidade maior com lideranças religiosas.
Leia Mais
-
O que é o decreto da “cultura gospel” assinado pelo presidente Lula?
-
Moraes retoma processo e amplia cerco jurídico a Ramagem após perda de mandato
-
Câmara cancela passaportes diplomáticos de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem
-
Análise: como a direita transformou consumo em arma de guerra cultural no Brasil
Mas Lula faz uma aposta conhecida na sua trajetória: dialogar com quem pensa diferente e transformar rejeição em escuta. Do ponto de vista institucional, reconhecer a cultura gospel também afirma a ideia de Estado que reconhece expressões culturais diversas sem privilegiar doutrinas, mas aceitando que elas fazem parte do tecido social brasileiro.
O gesto é importante porque em vez de falar sobre “quem a igreja pertence”, o governo tenta falar com “quem frequenta igreja”, que é o cidadão comum, trabalhador, muitas vezes afetado por desinformação e disputa ideológica.
Reduzir rejeição não significa conquistar votos imediatamente, mas diminui o ruído, desarma narrativas de perseguição e abre espaço para discutir políticas concretas com esse público.
No fim, o decreto é cultural, mas o movimento é político. E é nesse campo que Lula tenta atuar: menos confronto, mais aproximação; menos caricatura, mais realidade. A extrema direita construiu poder falando de medo.
Lula tenta reconstruir pontes falando de reconhecimento. Se isso terá efeito prático, o tempo dirá. Mas, no tabuleiro do poder, o gesto reposiciona o governo em um território onde, até pouco tempo, ele parecia ter desistido de disputar.











Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.
Ainda não há comentários nesta matéria.