Brasília — A partir deste mês, todas as favelas e comunidades urbanas do Brasil passam a ter pelo menos um Código de Endereçamento Postal reconhecido oficialmente pelos Correios. O anúncio, feito pelo governo federal, encerra uma espera histórica e marca o início de uma nova etapa da política urbana brasileira: o reconhecimento do território como condição para o exercício da cidadania.
A conquista é resultado direto do programa CEP para Todos, que utiliza como base territorial o mapeamento de favelas e comunidades urbanas realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo Demográfico de 2022.
Graças a esse levantamento, foi possível identificar 12.348 territórios em 656 municípios, que abrigam mais de 16 milhões de pessoas — 8,1% da população brasileira, das quais quase 73% se autodeclaram pretas ou pardas.
A meta, inicialmente prevista para dezembro de 2026, foi atingida com mais de um ano de antecedência, antecipando um passo simbólico na luta contra a invisibilidade urbana.
Para o presidente do IBGE, Marcio Pochmann, o dado estatístico se converteu em ferramenta de transformação social. Ele afirmou que o endereçamento das favelas é um marco histórico para a inclusão e a dignidade.
Ao reconhecer oficialmente territórios antes ignorados, o Estado não apenas desenha mapas, mas devolve às pessoas o direito de existir institucionalmente.
“Os dados do IBGE não são apenas estatísticas, são instrumentos de cidadania”, disse Pochmann durante o anúncio.
O reconhecimento postal das favelas era uma reivindicação antiga de movimentos comunitários e gestores públicos.
Sem endereço formal, milhões de brasileiros permaneciam fora do alcance de políticas sociais, sem acesso regular a correspondências, contas de serviços básicos ou entregas comerciais. A ausência de um CEP significava, na prática, a negação de um direito civil elementar: ser localizado.
Com o programa CEP para Todos, a ausência de endereço deixa de ser uma barreira e passa a integrar a agenda da política urbana. Segundo o ministro das Cidades, Jader Filho, “não há cidadania plena sem endereço”. A frase resume a essência do projeto: o CEP é o elo que liga o cidadão ao Estado e o dado ao direito.
O impacto social da medida é mais profundo do que os números indicam. O mapeamento do IBGE revelou que as favelas e comunidades urbanas não são bolsões isolados, mas redes complexas de sociabilidade, produção e circulação econômica.

Dar nome a uma viela ou numerar uma casa é também reconhecer sua existência como parte da cidade. Como afirmou a gerente de Favelas e Comunidades Urbanas do IBGE, Letícia Gianella, “endereçar é também um ato de reparação”.
O programa, que teve sua primeira fase concluída com a cobertura nacional de CEPs, segue em andamento. A segunda etapa, voltada à criação de códigos por logradouro — ruas, becos e travessas — já está em curso em 59 territórios do programa Periferia Viva.
Nesses locais, mais de 300 favelas estão sendo georreferenciadas, e 765 novos CEPs foram criados até agora, incluindo 279 apenas na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, beneficiando cerca de 19 mil moradores. A terceira fase, prevista até 2026, prevê a instalação de agências e postos dos Correios em 100 favelas pelo país.
O avanço foi possível graças à integração técnica entre o IBGE, a Secretaria Nacional de Periferias e os Correios. Gustavo de Carvalho Cayres, diretor-adjunto da Diretoria de Geociências do Instituto, descreve a experiência como um exemplo de política pública baseada em evidências.
Ele lembra que o IBGE trabalha há décadas com dados sobre o espaço urbano, mas que, até agora, essas informações raramente saíam do papel para se tornarem uma ação concreta.
“É significativo ver o trabalho das equipes do IBGE servir de base para uma política pública cujo interesse é evidente”, disse Cayres.
Essa política, porém, não se resume a estatísticas. O Guia Prático de Endereçamento em Periferias, elaborado pelo Ministério das Cidades com apoio técnico do IBGE, sintetiza uma mudança de paradigma: o dado passa a ter função social.
Leia Mais
O documento define o CEP como uma “chave que abre portas para direitos” e propõe que o endereçamento seja incorporado ao planejamento urbano como um critério de equidade territorial.
O projeto também dialoga com o conceito de “racismo territorial”, presente no guia e retomado por representantes da Secretaria Nacional de Periferias.
A ideia é que a exclusão de determinados territórios dos mapas oficiais reflete uma desigualdade histórica, reproduzida na ausência de infraestrutura, de serviços e de reconhecimento. A correção desse desequilíbrio começa, literalmente, com a nomeação dos lugares.
Antes da implementação do programa, o IBGE estimava que mais de 850 mil pessoas viviam em áreas sem qualquer referência postal. Nessas regiões, o acesso à saúde, à educação, à segurança e ao crédito era dificultado pela simples inexistência de um endereço formal.

O Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), criado pelo IBGE para viabilizar a coleta domiciliar, agora cumpre um papel ampliado: servir de base para o endereçamento público e comercial, articulando a produção de dados à efetivação de direitos.
O gerente do CNEFE, Eduardo Baptista, explicou que a identificação e localização corretas dos domicílios são condições fundamentais para a atuação do Instituto.
“A criação dos CEPs, além de formalizar logradouros, facilita o acesso a uma gama de serviços públicos e privados, para os quais o endereço é absolutamente fundamental”, disse.
A convergência entre o trabalho estatístico e o planejamento territorial é, segundo ele, um passo natural em direção a uma administração pública mais eficiente e inclusiva.
Por trás da técnica, há um gesto político. O reconhecimento postal das favelas não é apenas uma questão de logística, mas de pertencimento. Dar nome às ruas e número às casas é, em certa medida, devolver identidade a populações historicamente marginalizadas.
“Endereçar é combater o racismo territorial”, afirmou a secretária nacional de Periferias, Luana Alves, durante o lançamento do guia. O processo, contudo, não se encerra no reconhecimento formal. A próxima etapa será garantir que o endereço se traduza em acesso efetivo a serviços.
A presença física dos Correios nas favelas, prevista para a terceira fase do programa, deve consolidar o vínculo entre os territórios e o Estado, transformando a conquista simbólica em rotina cidadã.
Com o CEP, chegam também novas possibilidades econômicas: entregas, e-commerce, formalização de negócios locais e, principalmente, a chance de que políticas públicas de saúde, segurança e habitação encontrem seus destinatários. É a materialização de uma ideia simples, mas historicamente negligenciada: o dado público é o alicerce da democracia.
O programa CEP para Todos não apenas mapeou o território, mas reconfigurou o papel da estatística na vida social brasileira. O dado, quando devolvido à sociedade em forma de política pública, deixa de ser número e passa a ser reconhecimento.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.
Ainda não há comentários nesta matéria.