Direitos das mulheres

Nova Iorque — O século XXI prometia ser o da igualdade de gênero. Mas, entre guerras e cortes orçamentários, o mundo parece ter esquecido suas mulheres. Dois relatórios divulgados pelas Nações Unidas nas últimas semanas expõem a mesma tragédia sob ângulos diferentes: o desmonte do financiamento global à proteção de mulheres e meninas, e o aumento recorde de violência e exclusão em zonas de conflito. Segundo a ONU Mulheres, uma em cada três organizações dedicadas à defesa feminina já suspendeu programas por falta de recursos. Ao mesmo tempo, o secretário-geral António Guterres alerta que 670 milhões de mulheres vivem hoje a menos de 50 quilômetros de uma zona de guerra — o maior número desde 1946.

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O relatório “Em risco e subfinanciadas”, da ONU Mulheres, mostra que 34% das instituições que combatem a violência de gênero tiveram de encerrar projetos e 40% reduziram serviços essenciais, como abrigos e assistência jurídica.

Sete em cada dez registram aumento da impunidade, e quase 60% relatam a normalização da violência. “As organizações de direitos das mulheres são a espinha dorsal do progresso, mas estão sendo empurradas para o abismo”, afirmou Kalliopi Mingeirou, chefe da Seção de Combate à Violência da ONU Mulheres.

O desmonte financeiro ocorre num momento em que as necessidades humanitárias crescem em escala global. O segundo relatório, “Mulheres, Paz e Segurança”, apresentado pelo secretário-geral, descreve um cenário alarmante: 61 conflitos armados ativos em 2025 — o maior número em quase oito décadas — e um aumento de 87% na violência sexual associada a guerras em apenas dois anos.

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Na República Democrática do Congo, foram documentados 38 mil casos de violência sexual nos primeiros meses do ano. No Sudão, os pedidos de ajuda a sobreviventes de estupro subiram 288% entre 2023 e 2024.

Enquanto isso, o orçamento militar global atingiu US$ 2,7 trilhões — o maior valor desde o fim da Guerra Fria. Apenas 0,4% da ajuda humanitária destinada a contextos de conflito chega a organizações lideradas por mulheres.

Em alguns países, clínicas e abrigos foram fechados, e programas de acolhimento desapareceram. O contraste é cruel: o mundo investe em armas, mas não em refúgios.

A consequência é visível não apenas nos números, mas na política. Em 2024, nove em cada dez processos de paz não incluíram mulheres entre os negociadores. A média de participação feminina foi de 7% nas mesas de negociação e 14% entre mediadores.

“O mundo está caminhando na direção errada”, afirmou Nyaradzayi Gumbonzvanda, vice-diretora executiva da ONU Mulheres, ao comentar o relatório. Ela lembra que a militarização crescente e o enfraquecimento do multilateralismo corroem décadas de avanços institucionais.

A ONU defende medidas emergenciais: destinar ao menos 1% da ajuda ao desenvolvimento para organizações de mulheres em zonas de conflito, criar cotas obrigatórias de participação feminina em negociações de paz e fortalecer a responsabilização por crimes sexuais.

Mas o desafio vai além da assistência humanitária. A retração no financiamento de direitos humanos é também reflexo de um ambiente político global mais autoritário, no qual a igualdade de gênero é tratada como pauta secundária.

Trinta anos após a Plataforma de Ação de Pequim — marco histórico que colocou o fim da violência contra mulheres como prioridade mundial —, o cenário é de retrocesso. Apenas 5% das organizações consultadas pela ONU Mulheres acreditam conseguir operar por mais de dois anos sem novos aportes. E 85% preveem o enfraquecimento de leis e políticas de proteção.

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A crise é, ao mesmo tempo, moral e estrutural. A guerra e a desigualdade orçamentária se alimentam mutuamente. Em um mundo onde 70% das vítimas civis em conflitos são mulheres e crianças, a escassez de financiamento para proteção é mais do que um descuido — é um colapso de prioridades.

O panorama também interpela países em paz, como o Brasil. Programas de prevenção e acolhimento à violência de gênero dependem cada vez mais de fundos internacionais e de parcerias com governos locais.

O desmonte global pode, portanto, enfraquecer também políticas domésticas. Em 2023, por exemplo, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) reduziu 30% do apoio a projetos na América Latina por falta de recursos.

A ONU alerta: sem financiamento, não há proteção; sem proteção, não há paz. E sem a presença das mulheres, nenhuma democracia sobrevive inteira.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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