Amambaí (MS) — Ao receber a primeira tradução da Constituição Federal em língua Kaiowá, a comunidade indígena de Amambaí testemunhou um gesto inédito do Estado brasileiro. Pela primeira vez, o texto que define direitos e garantias fundamentais chega às mãos de um povo historicamente afastado das instituições que o produzem. A entrega encerra a fase inicial do programa Língua Indígena Viva no Direito e marca um avanço simbólico e prático no acesso à cidadania.
A cerimônia reuniu lideranças, professores e cerca de cem estudantes que participaram das atividades de leitura e validação. Tradutores indígenas, com apoio de anciãs e representantes locais, entregaram à comunidade a primeira parte da Carta Magna traduzida — incluindo trechos como o artigo 232, que garante aos povos indígenas a possibilidade de defender judicialmente sua autonomia e direitos coletivos.
O diretor do Departamento de Línguas Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, Eliel Kaiowá, afirmou que a tradução é “fundamental para essa acessibilidade” e destacou que “a nossa história precisa da escrita”, ressaltando a dimensão prática do esforço: permitir que os próprios povos conheçam e exerçam direitos inscrito na Constituição.
A entrega faz parte de um processo de validação local, em que as comunidades podem revisar e sugerir adaptações para que termos jurídicos em português sejam expressos com precisão cultural nas línguas originais.
A gestora do programa na AGU, Jessica Zimmer Stefenon, disse que o trabalho representou “compartilhamento de saberes entre o Estado e os povos originários” ao levar os textos diretamente às escolas indígenas.
Para lideranças Kaiowá, o momento foi simbólico. O presidente da organização Ixiru’Ete e representante da Aty Guasu, Gilmar Veron Alcântara, considerou a iniciativa “um momento histórico” para a comunidade, segundo relatório do evento.
A participação de jovens estudantes, que leram e comentaram trechos traduzidos, foi citada como prova de que o projeto busca efetivar o direito de acesso à informação na língua própria.
O Mato Grosso do Sul concentra a maioria dos cerca de 38,6 mil falantes do Kaiowá. O projeto já havia iniciado entregas a outras línguas: em setembro, trechos da Constituição foram apresentados aos povos Tikuna e Kaingang — movimentos que a AGU e parceiros destacam como parte de uma política de “diálogo intercultural” entre Estado e povos originários.

Além do simbolismo, a tradução visa facilitar o acesso a procedimentos judiciais e administrativos, amparar ações de defesa de territórios e direitos coletivos, e reduzir barreiras de comunicação que muitas vezes inviabilizam a participação plena das comunidades em processos legais.
O coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e demais autoridades presentes qualificaram a iniciativa como passo concreto para ampliar a cidadania.
O projeto Língua Indígena Viva no Direito será apresentado na COP30, em Belém, onde a AGU pretende levar o programa à Aldeia COP, espaço que reunirá povos indígenas do Brasil e do exterior. A participação visa conectar direitos linguísticos, justiça e agendas de sustentabilidade, além de valorizar saberes tradicionais no debate climático.
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A iniciativa prevê concluir a segunda parte da tradução da Constituição ainda neste ciclo, com entrega e validação previstas até fevereiro de 2026, antes de avançar com as versões finais da Convenção 169 da OIT e dos ODS para as línguas contempladas.
Segundo os organizadores, cada etapa seguirá metodologia participativa, com revisões comunitárias que garantam fidelidade cultural e terminológica.
A tradução da lei maior para o Kaiowá marca, assim, mais do que uma entrega de textos: representa a tentativa do Estado de reduzir barreiras linguísticas que historicamente afastaram povos indígenas do acesso pleno à justiça e à proteção de seus direitos coletivos.










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