Brasília — Os dados do Censo 2022 revelam um fenômeno inédito na história recente do Brasil: a autoidentificação como indígena cresceu 90% desde 2010, alcançando 1,7 milhão de pessoas. Mais do que um dado populacional, o resultado simboliza o fortalecimento de um movimento de reafirmação identitária e social que vem transformando a relação entre povos originários, Estado e economia.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país registra hoje 391 etnias e 295 línguas indígenas, altas de 28% e 8% em relação ao levantamento anterior.
O aumento é atribuído, em parte, à maior valorização do pertencimento étnico e à presença de políticas públicas voltadas à proteção de povos e comunidades tradicionais.
A gerente de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, Marta Antunes, afirmou à Agência Gov que “o crescimento da autodeclaração é fruto de um processo de organização social e reconhecimento público da diversidade indígena”, destacando que, após décadas de invisibilidade, declarar-se indígena passou a ser visto como afirmação de cidadania.
Nos últimos anos, o avanço de políticas de inclusão e o fortalecimento de movimentos indígenas urbanos favoreceram o que especialistas chamam de renascimento estatístico desses povos. Em 2010, muitos ainda omitiam a identidade étnica por receio do preconceito.
Em 2022, o orgulho passou a ser motor de pertencimento. “Depois de anos de ocultação para lidar com o racismo, se reúnem condições favoráveis para a declaração do pertencimento étnico”, disse Marta Antunes.
Esse fenômeno tem efeitos diretos sobre o desenho das políticas públicas. Segundo o IBGE, 73% dos indígenas declararam etnia específica, e o Censo captou pela primeira vez a possibilidade de dupla etnia — reflexo de uma realidade em que famílias e comunidades cruzam fronteiras culturais e territoriais.
“Há pessoas que acionam as etnias da mãe e do pai e declaram seu duplo pertencimento étnico. Isso é uma riqueza que o Censo conseguiu captar”, afirmou Marta.
Os dados mostram também um deslocamento importante: o crescimento da população indígena fora das Terras Indígenas, especialmente em áreas urbanas, que saltou de 324 mil pessoas em 2010 para 844 mil em 2022.

Em cidades como Campinas (SP), Foz do Iguaçu (PR) e Santarém (PA), a diversidade étnica aumentou graças à presença de universidades, programas de assistência e políticas locais de inclusão.
O gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE, Fernando Damasco, explicou que “essas cidades médias se tornaram polos de atração da população indígena, com acesso maior à educação e oportunidades econômicas”. Para ele, o movimento reflete um novo mapa da diversidade no país, onde a presença indígena se consolida tanto no campo quanto na cidade.
São Paulo lidera a lista de estados com maior diversidade, com 271 etnias identificadas, seguido por Amazonas (259) e Bahia (233). Em todas as unidades da federação, com exceção do Amapá, houve ampliação no número de grupos reconhecidos.
A etnia Tikúna segue como a mais numerosa, com 74 mil pessoas, seguida pelos Kokama (64 mil) e Makuxí (53 mil). Em muitos casos, o crescimento populacional acompanha processos de reorganização comunitária e reconhecimento jurídico. Damasco cita os Kokama como exemplo:
“Nos últimos anos, fortaleceram suas formas de organização e reivindicações por direitos fundamentais. Com essa mobilização e as melhorias no levantamento, o retrato desse grupo foi aperfeiçoado.”

A multiplicação de etnias e línguas também revela desafios persistentes. Embora o número de falantes de idiomas indígenas tenha subido de 293 mil para 433 mil pessoas, a proporção de indígenas que falam a própria língua caiu de 37% para 28%.
Dentro das Terras Indígenas, no entanto, o uso das línguas nativas aumentou para 63%, o que demonstra resistência cultural mesmo diante da urbanização.
“O avanço do português é inevitável pela necessidade de estudo e trabalho nas cidades”, reconheceu Damasco. “Mas, ao mesmo tempo, cresce o esforço de revitalização das línguas e da educação bilíngue.”
O fortalecimento identitário não é apenas simbólico: ele tem impacto econômico e social. Ao se reconhecerem oficialmente, mais indígenas acessam programas de crédito rural, registro civil, saúde e educação diferenciada, além de políticas de saneamento e habitação.
Mesmo com avanços, o Censo mostra desigualdades profundas: entre os Tikúna, 74% vivem sem acesso à água encanada; entre os Guarani Kaiowá, 82% não têm saneamento básico adequado. Esses indicadores apontam para a necessidade de que o reconhecimento étnico venha acompanhado de infraestrutura e investimento público.
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A taxa de alfabetização indígena subiu para 84,9%, mas ainda fica abaixo da média nacional. A redução do analfabetismo — de 32% para 21% — demonstra, segundo o IBGE, o efeito das políticas educacionais e de inclusão digital implementadas na última década.
Com o aumento de 75 novas etnias identificadas, o Censo 2022 consolida uma visão de país mais plural. “O Brasil, quando comparado a outros da América Latina, tem uma diversidade étnica e linguística extraordinária”, afirma Marta Antunes. “Esse retrato é também um reflexo da capacidade das políticas públicas de garantir que as pessoas existam oficialmente.”
Ao revelar mais rostos, vozes e línguas, o novo Censo não apenas mapeia identidades — revela o avanço da cidadania indígena como indicador de desenvolvimento humano. O Brasil que emerge dos dados do IBGE é mais diverso, mais consciente e, finalmente, mais visível.










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