Flup
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro (RJ) — A 15ª edição da Festa Literária das Periferias (Flup) começou nesta quarta-feira (19) transformando o Viaduto de Madureira em um espaço dedicado a celebrar pensadores negros e tensionar a hegemonia cultural brasileira, com homenagens inéditas a Conceição Evaristo e reflexões sobre o legado anticolonial de Frantz Fanon, que orientam o tema deste ano e dão novo fôlego à disputa por memória, identidade e acesso à produção intelectual nas periferias.

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O evento, que se estende de 19 a 23 e de 27 a 30 de novembro, consolida-se como um dos mais relevantes encontros culturais do país ao ocupar territórios periféricos com debates, exposições e intervenções artísticas.

Desde sua criação, a Flup tem se recusado a se limitar a espaços tradicionais de circulação literária, aproximando autores, novos leitores e moradores de regiões historicamente marginalizadas da cena cultural do Rio de Janeiro.

Neste ano, Conceição Evaristo é homenageada pela primeira vez com o reconhecimento ainda em vida — uma escolha simbólica em um país que frequentemente celebra intelectuais negros postumamente.

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Idealizadora do conceito de “escrevivência”, a escritora inscreveu na literatura brasileira uma perspectiva que transforma experiências pessoais de mulheres negras em narrativas coletivas, tensionando o cânone e ampliando a compreensão sobre a produção intelectual periférica.

Sua presença como referência central da programação reforça a necessidade de democratizar o acesso à palavra escrita e à representação simbólica.

Em paralelo, o evento apresenta uma exposição dedicada a Frantz Fanon, psiquiatra e intelectual afro-caribenho que se tornou um dos pilares do pensamento anticolonial.

Suas críticas à dominação europeia e ao racismo estrutural seguem mobilizando coletivos, acadêmicos e movimentos sociais, especialmente em países marcados por desigualdades raciais profundas como o Brasil.

A presença de sua obra na Flup responde ao contexto atual, no qual debates sobre tecnologia, vigilância e exclusão digital se entrelaçam com heranças coloniais ainda vivas.

Flup
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A mesa “O Sonho de Nossos Heróis, que Precisamos Manter Vivo” reúne a própria Conceição Evaristo e Mireille Fanon, filha do filósofo, para discutir as trajetórias das lutas sociais no Brasil e no Caribe.

O diálogo entre ambas representa um encontro geracional e transnacional sobre estratégias de resistência ao racismo e à violência política, reforçando a dimensão global das disputas por autonomia cultural.

Entre as intervenções do evento, a instalação “Códigos Negros” destaca-se ao reinterpretar Os Condenados da Terra, obra central de Fanon, por meio de tecnologias digitais e inteligência artificial.

Exibidas em telões de LED no viaduto, as peças de Guilherme Bretas, Ilka Cyana, Poliana Feulo e Walter Mauro exploram como o pensamento anticolonial pode ser um instrumento crítico diante das novas ferramentas tecnológicas.

Para a curadora Silvana Bahia, o objetivo é atualizar Fanon para os desafios contemporâneos, denunciando estruturas racistas que persistem mesmo em ambientes inovadores.

A relevância social da Flup não se restringe à programação anual. Em seus 12 anos de trajetória, o projeto já percorreu comunidades como Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia, Vidigal, Cidade de Deus, Maré e Morro da Providência, integrando ações educativas, formações de escritores e lançamentos de novos autores.

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A estratégia de ocupar espaços públicos e favelas reafirma um princípio fundamental: a literatura não deve ser um privilégio restrito, mas um direito cultural que atravessa fronteiras econômicas e geográficas.

Esse trabalho acumulado resultou em reconhecimento institucional amplo, como o prêmio Jabuti de Fomento à Leitura, o Awards Excellence da London Book Fair e o título de patrimônio imaterial concedido pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Os prêmios refletem não apenas a relevância literária da Flup, mas sua capacidade de criar políticas culturais concretas em territórios frequentemente negligenciados pelo Estado.

Ao homenagear pensadores negros e reposicionar a periferia como produtora — e não apenas consumidora — de cultura, a Flup reafirma seu papel político.

Em um país onde a desigualdade racial se traduz também na desigualdade de oportunidades culturais, o evento desafia as hierarquias simbólicas que historicamente apartaram a população negra dos centros de decisão e dos espaços de legitimidade intelectual.

Mais do que uma festa literária, a Flup funciona como uma declaração pública: o fortalecimento da democracia brasileira depende também da ampliação do acesso à palavra, ao conhecimento e à pluralidade de vozes. E, neste sentido, ocupar Madureira com Fanon, Evaristo e centenas de novas escrevivências é, ao mesmo tempo, gesto cultural e ato de reparação histórica.

Redação IA Dinheiro

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A Redação IA Dinheiro produz reportagens e conteúdos com foco em democracia, desigualdade e políticas públicas.

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