Rio de Janeiro (RJ) — A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lança em janeiro o documentário Nzila, uma obra que revisita a experiência das favelas do Rio de Janeiro pela perspectiva da saúde antirracista, da ancestralidade e da organização comunitária. Produzido em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU), o filme percorre sete territórios populares para mostrar como práticas de cuidado coletivo, formação política e protagonismo negro têm estruturado redes de proteção em meio a contextos marcados por desigualdade e violência de Estado.
A produção dialoga diretamente com o projeto “Saúde na Favela pela Perspectiva Antirracista”, iniciativa que já formou cerca de 500 promotores populares.
A escolha de “Nzila” — palavra da língua bantu que significa “caminho” — sintetiza a proposta central da obra: reafirmar que políticas de saúde eficazes não emergem apenas das instituições estatais, mas também de trajetos construídos por comunidades que historicamente precisaram se defender de negligências estruturais.
O pesquisador Leonardo Brasil Bueno, um dos coordenadores do projeto, explica que o documentário busca disputar a narrativa predominante sobre as favelas, frequentemente restrita à violência e à marginalização.
Segundo ele, a obra procura revelar os territórios como lugares de resistência, solidariedade e inovação social no campo da saúde. “Queremos mostrar a perspectiva da favela pelo olhar da esperança, da promoção da vida e da construção coletiva de bem-estar”, afirmou em entrevista à Rádio Brasil de Fato.
A centralidade das políticas de saúde voltadas à população negra aparece como eixo estruturante do filme.
Dados citados pelo pesquisador, com base em levantamentos da ONU, indicam que 80% dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) se declaram negros — indicador que revela tanto a importância da rede pública quanto a necessidade de políticas específicas que enfrentem barreiras estruturais, discriminação institucional e desigualdade de acesso.
Nesse contexto, o trabalho dos promotores populares é retratado como uma frente estratégica de cuidado e prevenção.

As formações abrangem agentes comunitários, profissionais de unidades básicas, lideranças locais e moradores que atuam na identificação de violações, na orientação sobre direitos e no acolhimento de situações que envolvem racismo, violência obstétrica, negligência no atendimento e impactos de operações policiais dentro de equipamentos públicos.
Territórios como Manguinhos, Jacarezinho, Vila Aliança, Rocinha e Mangueirinha são apresentados como espaços onde essas iniciativas se articulam diante de realidades duras — entre elas, operações letais recentes, como as ocorridas no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro.
Ao percorrer esses lugares, Nzila evidencia que políticas de segurança baseadas na lógica militarizada produzem efeitos diretos sobre a saúde das comunidades, desde traumas psicológicos até o colapso de serviços básicos.
A circulação do documentário pelas favelas também faz parte do projeto pedagógico. Após a pré-estreia no Museu da Vida, no Rio, Nzila será disponibilizado no YouTube e na plataforma Fioflix, ampliando o acesso a públicos que muitas vezes não são contemplados por circuitos tradicionais de divulgação cultural.
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Bueno afirma que a opção pela distribuição pública reforça o compromisso histórico da Fiocruz com educação popular e democratização do conhecimento.
O pesquisador também anunciou que o Museu da Maré receberá uma oitiva com moradores para monitorar os efeitos das megaoperações policiais sobre a saúde física e mental das comunidades — um esforço que dialoga com o próprio eixo narrativo do filme.
A iniciativa busca produzir dados e relatos que fortaleçam políticas públicas de redução de danos e estratégias comunitárias de proteção.
Ao destacar práticas de cuidado enraizadas em tradições negras, mobilização territorial e saberes ancestrais, Nzila insere-se em uma tendência crescente da produção cultural brasileira: narrativas que deslocam o eixo interpretativo das favelas para além das estatísticas de violência, reivindicando essas comunidades como polos de criação, resistência e elaboração de futuros possíveis.
É uma leitura que tensiona o imaginário dominante e propõe que políticas de saúde — e políticas culturais — só serão efetivas se incorporarem a integralidade da vida nesses territórios.











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