Assentamentos do MST

O sol ainda não nasceu quando Antônio acende o fogo de lenha no pequeno fogão de barro. O café ferve devagar enquanto o cheiro da terra úmida invade a cozinha simples de tijolos aparentes. Do lado de fora, o galo canta e o silêncio da madrugada só é rompido pelo ranger do balde puxando água do poço.

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Ele ajeita o chapéu de palha, calça as botas já gastas e segue em direção ao roçado. O dia começa assim há mais de vinte anos, desde que recebeu o lote de 12 hectares no assentamento Dom Tomás Balduíno, no interior da Bahia.

Antônio planta o que a maioria dos brasileiros come: feijão, milho, mandioca e hortaliças. Parte fica para o consumo da família, o resto segue para a feira da cidade mais próxima, a 40 quilômetros dali, onde o caminhão chega só quando o tempo ajuda. “Se chover, a estrada vira um atoleiro”, diz, olhando o horizonte avermelhado do amanhecer.

Ele sabe que o percurso é incerto, mas a venda é necessária: do que conseguir vender depende o caderno de anotações onde controla os fiados, as contas do mês e o dinheiro guardado para o conserto do trator emprestado da cooperativa.

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O assentamento Dom Tomás Balduíno nasceu em 2004, depois de meses de acampamento à beira da BR-242, no município de Itaberaba. Antônio lembra das noites sob a lona preta, da chuva fina que encharcava o chão e do medo de despejo.

“A gente ficou quase um ano esperando a resposta”, diz. Quando o Incra reconheceu a área e distribuiu os lotes, a fazenda improdutiva virou chão de trabalho. Hoje, onde antes havia pasto abandonado, há casas de tijolo, hortas e uma escola que começou em um barracão de madeira erguido pelos próprios moradores e depois foi incorporada à rede pública.

“Aqui foi onde a gente aprendeu que a terra dá trabalho, mas também dá nome”, conta Antônio, lembrando o pai, que trabalhou como meeiro a vida toda sem nunca ter um pedaço de chão próprio.

O Brasil tem hoje cerca de 9,5 mil assentamentos reconhecidos pelo Incra, onde vivem aproximadamente um milhão de famílias. Só entre 2023 e 2024, o governo federal assentou mais de 71 mil delas, distribuídas em 24 estados.

Os números mostram avanços, mas a rotina no campo ainda revela outra história. A falta de crédito, infraestrutura e assistência técnica limita a produção e a renda. A agricultura familiar responde por quase 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, mas recebe pouco mais de 20% do crédito rural total.

Na safra 2023/2024, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf, liberou R$ 59,6 bilhões para pequenos produtores, mas boa parte dos assentados ficou de fora. Falta documentação, sobram exigências.

“Sem título da terra, a gente não consegue crédito”, explica Antônio. A burocracia impede o acesso ao dinheiro, e o dinheiro é o que permitiria comprar insumos, melhorar o solo, consertar máquinas. Mesmo assim, ele insiste. Planta o que pode, com o que tem, e conta com a ajuda dos vizinhos nos mutirões de plantio.

Nos últimos anos, o Movimento Sem Terra voltou a ampliar a produção de alimentos orgânicos e o uso de sementes crioulas. No galpão comunitário, os assentados guardam espécies tradicionais que resistem ao avanço dos transgênicos.

“São sementes de verdade, que a gente não compra e não perde”, diz Antônio, com orgulho. A cooperativa do assentamento participa de feiras e programas de abastecimento público, como o PAA, que compra alimentos diretamente de agricultores familiares para escolas e creches. “Quando a prefeitura compra da gente, é bom pra todo mundo”, comenta.

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O trabalho é duro e o lucro, incerto. A renda mensal de Antônio raramente ultrapassa o salário mínimo. As variações do clima e o preço do combustível pesam mais que o sol do meio-dia. Em anos de seca, ele depende do poço coletivo perfurado pela associação dos moradores e das cisternas construídas com apoio de ONGs locais.

Quando chove demais, o milho apodrece, o feijão não seca e o caminhão da feira não passa. Ainda assim, ele segue. “A gente aprendeu a viver do que planta. E a terra ensina mais que livro”, diz, enxugando o suor com a manga da camisa.

O MST estima que ainda existam mais de 145 mil famílias acampadas à espera de um lote. São brasileiros que vivem à beira de estradas, em barracos de lona, esperando uma oportunidade para produzir.

No outro extremo, a concentração fundiária permanece quase intocada: menos de 2% das propriedades rurais ocupam quase metade de todas as terras agricultáveis do país. Entre esses dois Brasis, está o agricultor assentado, que carrega nas mãos a sobrevivência de quem vive da própria colheita.

À tarde, o sol castiga o roçado. Antônio para um instante para olhar a plantação e medir o tempo da colheita. A marmita, amassada de tanto uso, guarda arroz, feijão e um pedaço de carne seca. “É simples, mas é nosso”, diz, sorrindo.

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Ao longe, o barulho do trator rompe o silêncio. O cheiro da terra recém-revirada mistura-se ao vento quente, e o som das enxadas acompanha o ritmo do trabalho. É nessa cadência que a vida se repete: plantar, esperar, colher.

Quando o dia termina, ele lava as mãos no balde d’água e observa o céu avermelhado. Pensa no filho que estuda em uma escola técnica do movimento e sonha em cursar agronomia. “Ele quer aprender para melhorar o que a gente faz errado”, comenta. O futuro parece distante, mas ele sabe que a semente plantada um dia dá fruto.

O Brasil urbano raramente enxerga esse pedaço do país. Nos mercados, o feijão vem ensacado, o milho, debulhado, o leite, em caixinha. Mas cada alimento carrega o rastro invisível de quem o cultivou.

São homens e mulheres como Antônio, assentados que transformaram a terra conquistada em fonte de vida e de esperança. O país talvez ainda não tenha aprendido a valorizar quem o alimenta, mas é dessa gente que brota o chão onde o Brasil se sustenta.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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