A trajetória escolar de uma criança no Brasil começa muito antes da sala de aula: começa na renda da família, na distância até a escola, na cor da pele. Para alunos negros, cada etapa exige dobrar esforços. E é por isso que, mesmo após duas décadas de políticas inclusivas, o país ainda mantém um abismo educacional que parece se repetir geração após geração.
Essa desigualdade não persiste por ausência de políticas públicas — na verdade, os avanços são reais e mensuráveis. O que acontece é que o ponto de partida é tão desigual que cada conquista precisa enfrentar uma barreira histórica construída ao longo de séculos.
As cotas raciais mudaram a universidade; o Bolsa Família reduziu evasão; o novo Pé-de-Meia combate a desistência no ensino médio. Ainda assim, a distância permanece.
Os números ajudam a visualizar essa herança. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, pessoas brancas têm, em média, 1,6 ano a mais de estudo que pessoas negras.
Pode parecer pouco, mas representa uma diferença acumulada desde a creche até o vestibular. É o equivalente a chegar atrasado em uma maratona que você sequer escolheu disputar — e cujo percurso é, desde o início, mais acidentado.
Esse dado pode ser reforçado pelo estudo desenvolvido pelo movimento Todos Pela Educação que mostra que jovens negros enfrentam uma década de atraso no acesso a um ensino médio de qualidade.
Não por acaso, a taxa de evasão é mais alta entre adolescentes negros, que lidam com vulnerabilidade social, trabalho precoce, longos deslocamentos e escolas com infraestrutura pior. O racismo estrutural, aqui, não é conceito abstrato; é cotidiano escolar.
Não podemos tirar o mérito de governos progressistas que vem se empenhando em reduzir essas desigualdades. A própria história recente da educação brasileira mostra que houve mudanças profundas que alteraram o horizonte de milhões de jovens negros nos últimos anos.
A expansão das universidades federais — inclusive no interior — abriu territórios onde a presença do Estado era mínima. O Prouni criou acesso em escala para quem sempre foi barrado pelo preço. E, em 2012, as cotas raciais marcaram uma virada civilizatória.

Em uma década, segundo dados da INEP e da ANDIFES, a proporção de alunos pretos, pardos e indígenas nas universidades federais subiu de cerca de 42% em 2010 para 53% em 2020 — e, em 2020, essas categorias já eram maioria em 58 das 110 instituições federais.
Era um cenário impensável antes das ações afirmativas. Pela primeira vez, professores, pesquisadores, médicos, engenheiros e juristas negros começaram a ocupar espaços historicamente reservados às elites brancas.
Esse avanço não é retórico; é mensurável, concreto, transformador. Só que a universidade é o topo da pirâmide — e muito do que define o destino de cada estudante acontece bem antes, na base.
É aqui que entram políticas como o Bolsa Família, essencial para reduzir evasão e garantir alimentação adequada; o Fundeb permanente, que trouxe mais previsibilidade ao financiamento da educação; e o recente Pé-de-Meia, que cria poupança estudantil para jovens do ensino médio — mecanismo que atua diretamente no ponto mais frágil da trajetória de alunos negros: a permanência.
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Essas políticas importam porque combatem aquilo que, silenciosamente, fabrica desigualdade todos os dias: o impacto da pobreza sobre o aprendizado. Para muitas famílias negras, renda e escola são partes da mesma equação.
Quando o salário falta, quando o transporte pesa, quando o trabalho infantil é o único caminho para complementar a renda, a educação deixa de ser escolha e se torna privilégio.
Mesmo assim, todas essas iniciativas, embora fundamentais, esbarram em uma questão estrutural: a profundidade da exclusão histórica é maior que a capacidade do Estado de corrigi-la no curto prazo. É possível expandir universidades rapidamente; é possível criar programas de acesso e permanência.
Mas é impossível, em apenas duas décadas, reverter um modelo educacional que, por mais de cem anos após a abolição, negou às famílias negras os mesmos recursos disponíveis às famílias brancas.
A pandemia reforçou essa diferença. Estudantes negros foram os que menos tiveram acesso a computadores, internet ou espaços adequados de estudo. As perdas de aprendizagem — já desiguais — ficaram ainda maiores.
E é por isso que, mesmo no momento em que o Brasil comemora o maior número de universitários negros de sua história, a desigualdade no ensino básico continua sendo a engrenagem central do abismo.
Se existe uma conclusão para essa análise, ela é esta: o Brasil sabe o que funciona, mas ainda não transformou esses instrumentos em um compromisso permanente de Estado. A cada descontinuidade — seja no financiamento, na agenda racial ou nos programas sociais — parte dos avanços se perde. E a desigualdade reaparece com a mesma força.
A presença de jovens negros nas universidades brasileiras é uma das mais importantes conquistas sociais do século XXI. Mas, enquanto a base continuar estruturada por desigualdades que começam na cor da pele, esses avanços continuarão maiores no símbolo do que na escala.
O desafio não é inventar políticas novas. É fazer com que as existentes — cotas, renda, permanência, financiamento — tenham continuidade suficiente para que uma geração inteira possa, finalmente, largar do mesmo ponto.











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