Cartum — Diante da fome no Sudão, das restrições políticas na Guiné e do desalento da juventude marfinense, o continente africano volta ao centro do debate global sobre desenvolvimento. As crises recentes revelam as feridas de um território que, apesar de rico em recursos e vitalidade demográfica, ainda luta para converter sua riqueza natural em prosperidade social.
O drama do Sudão, onde agências da ONU alertam para a morte iminente de milhares de crianças em El Fasher, sintetiza a fragilidade das estruturas estatais corroídas por décadas de conflito.
Na Guiné, a decisão da comissão eleitoral de exigir um depósito de US$ 100 mil para candidaturas presidenciais limita o jogo democrático a uma elite econômica, enquanto na Costa do Marfim, jovens de Abidjan dizem querer apenas “empregos e paz” diante da candidatura a um quarto mandato do presidente Alassane Ouattara.
Fragmentadas, essas histórias revelam um padrão: o bloqueio estrutural ao crescimento autônomo africano.
A herança colonial explica boa parte dessa paralisia. A maioria dos países africanos herdou fronteiras artificiais e economias voltadas à exportação de matérias-primas — estruturas criadas para servir à metrópole, não à população local.
Mesmo após a independência, a dependência de commodities e a ausência de políticas industriais sólidas mantiveram o continente preso à armadilha da especialização primária. Países ricos em bauxita, ouro ou petróleo continuam sem refino, tecnologia ou cadeias de valor internas. Na prática, exportam recursos e importam pobreza.
Essa estrutura extrativista também se reflete na política. Regimes autoritários e democracias frágeis convivem com economias que crescem sem redistribuir. Embora o FMI projete expansão média de 4% para o continente em 2025, a renda permanece concentrada em enclaves urbanos e setores exportadores. O resultado é um paradoxo: crescimento sem desenvolvimento.
Segundo a economista ganesa Mavis Owusu-Gyamfi, presidente do African Centre for Economic Transformation, o desafio central está em converter o potencial demográfico em transformação produtiva.
“Precisamos criar empregos para os nossos jovens”, disse ela em entrevista à The Economist. A frase sintetiza a urgência de um continente em que mais de 60% da população tem menos de 25 anos, mas enfrenta taxas de desemprego superiores a 30% em várias regiões.

Samin Rezaei, pesquisador do Institute for Economics & Peace, reforça o alerta: “A população jovem em crescimento tem potencial para transformar o destino econômico da África, mas isso exige instituições e estruturas capazes de promover resiliência e prosperidade”.
Na maioria dos países africanos, a falta dessas instituições — unida à dependência de capital estrangeiro e à fragilidade fiscal — limita a capacidade de investimento público e a inovação local.
A desigualdade entre países também aprofunda a distância entre o discurso de modernização e a realidade social. Enquanto Ruanda, Quênia e Gana tentam diversificar suas economias e investir em tecnologia, outras nações continuam presas a ciclos de endividamento e dependência de commodities.
O caso do Sudão, devastado por uma guerra civil que destruiu lavouras e infraestruturas, é extremo, mas ilustra o efeito dominó: desmatamento, desertificação, fome e êxodo rural.
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Mesmo os países que experimentam estabilidade política enfrentam uma economia global que ainda trata a África como reserva de recursos.
As cadeias de valor das transições energética e digital — como lítio, cobalto e coltan — repetem a lógica do passado: mineração com baixo valor agregado e exportação para centros industriais da Europa e da Ásia. O resultado é uma nova forma de dependência: verde, mas ainda colonial.
As vozes africanas, no entanto, começam a questionar esse modelo. “À medida que os países ricos envelhecem e encolhem, a população africana continuará crescendo — e isso pode ser uma vantagem competitiva”, destacou um editorial recente da The Economist.
A frase, embora otimista, aponta para uma inflexão: o continente não é apenas um problema a resolver, mas um mercado em formação, com capacidade de ditar o ritmo da economia global se souber aproveitar seu bônus demográfico.
As novas zonas de livre comércio continental, como a AfCFTA (Área de Livre Comércio Continental Africana), e políticas de industrialização verde podem abrir caminhos. Ainda assim, sem infraestrutura, crédito e tecnologia locais, a promessa de um novo desenvolvimento permanece distante.
O risco é repetir o passado com uma nova roupagem: o continente como fornecedor de insumos “sustentáveis” para a economia mundial, sem participação nos ganhos.
Mais do que falta de recursos, o que trava a África é o bloqueio estrutural à autonomia. Décadas de ajustes impostos por organismos internacionais enfraqueceram os Estados nacionais e tornaram dependente a formulação de políticas públicas.
A reversão desse quadro exige planejamento de longo prazo e investimento interno em ciência, educação e indústria — o que, em muitos casos, ainda depende de estabilidade política e vontade de romper com a lógica da dependência.
A África segue dividida entre sua herança colonial e a promessa de um novo desenvolvimento. O continente que mais cresce em população é também o que menos se industrializa. Entre guerras, juventude sem emprego e democracias precárias, o futuro africano continua sendo o espelho mais nítido das contradições do capitalismo global.
E talvez, como lembra Rezaei, o verdadeiro desafio seja “transformar o potencial em poder” — antes que o bônus demográfico se torne mais uma oportunidade perdida.










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