A cor do trabalho

André acorda às quatro da manhã, quando o bairro ainda está envolto em silêncio. O único som que rompe a madrugada é o motor do ônibus que corta as ruas estreitas de São Cristóvão, na periferia de Salvador.

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A mulher ainda dorme com os dois filhos pequenos. Ele veste o uniforme manchado de cal, calça as botas pesadas e tira da geladeira a marmita de alumínio preparada no dia anterior.

Rapidamente ele passa um café de má qualidade, coloca em uma garrafa térmica que já não é mais capaz de mantê-lo quente por duas horas, põe o líquido em uma xícara, dá um único gole e ouve o microondas apitar.

Ele sabe que de nada adianta esquentar a marmita, afinal, até a hora do almoço ela já esfriou. Mas ainda assim mantém a mesma rotina diariamente. Após certificar-se de ter pegado tudo, ele sai sem fazer barulho para não acordar a esposa e os filhos.

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Anda por mais de quatro quarteirões e junto de outros pedreiros, ajudantes e serventes pega um ônibus que o levará para as zonas mais ricas da cidade.

O destino é uma obra na orla atlântica, onde um apartamento custa o equivalente ao que ele ganharia em mais de vinte anos de trabalho — ou mais.

Uma hora depois, o ônibus chega ao canteiro de luxo. Lá, o cheiro de cimento fresco se mistura ao sal do mar. Os homens se espalham com as ferramentas nas mãos, cada um em sua tarefa.

André sobe andaimes, carrega blocos e prepara massa. Do alto, observa o mar azul e os prédios brancos da orla. “Bonito, né?”, pergunta, com um sorriso que mistura admiração e distância.

A cena repete o país: homens negros erguendo muros para apartamentos brancos. “Na obra, quase todo mundo é igual a mim”, diz. “O engenheiro é o único que não se suja.”

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Segundo o IBGE, o percentual de pretos ou pardos no mercado informal no Brasil ultrapassa 47,4%. Os negros ainda são maioria em trabalhos mais pesados, como agropecuário (62,7%) e da construção (65,2%).

É nesse segundo grupo que está André, que sente as estatísticas no corpo. “A gente constrói o que nunca vai morar, limpa o que nunca vai usar, carrega o que nunca vai ter.”

Na pausa do almoço, ele senta no chão. Tira da mochila a marmita com arroz e o feijão que já esfriaram e começa a comer rapidamente, até porque a obra tem data para ser concluída.

A história dele é antiga. O avô foi retirante do sertão e trabalhou como carregador no porto. O pai, servente de pedreiro, morreu cedo. André cresceu entre obras e entre o ditado de que pobre morre pobre. Sem perspectiva, concluiu apenas o ensino fundamental. “A vida correu mais rápido que eu”, diz.

A casa onde mora foi construída aos poucos, com sobras de materiais trazidos das obras. “Aqui tem azulejo de hotel, porta de apartamento caro, piso que ia pro lixo”, explica, com certo orgulho. Cada parede é uma lembrança de onde ele trabalhou — uma coleção de restos que viraram abrigo.

E faz lembrar que a herança da escravidão não está apenas nos livros, mas nas ruas e nos uniformes. O Brasil libertou seus cativos sem oferecer terra, escola ou reparação.

A abolição formal criou uma liberdade de papel: o direito de trabalhar, mas não de ascender. “Meu avô carregava pedra em carroça, eu carrego no carrinho. É o mesmo peso, só mudou o tempo”, diz André.

O corpo é a ferramenta e o limite. Quando adoece, não há afastamento nem salário. Se faltar, perde o dia. Se cair, perde a renda. A carteira de trabalho, guardada em casa, está em branco há oito anos. No lugar de holerite, um caderno de anotações com datas, diárias e adiantamentos. “Meu patrão é a semana”, resume.

No retorno, o ônibus está lotado. Homens e mulheres amontoados, alguns dormindo em pé. Pelas janelas, a cidade escurece. A distância entre quem constrói e quem desfruta é medida em horas de transporte: duas, entre ida e volta.

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No gueto, ele observa uma cidade parecida com ele: negra, parda e pobre. Nas áreas turísticas onde trabalha, o cenário é o oposto. É a diferença entre dois brasis que ainda teimam em existir.

A noite já se faz presente quando ele chega. A mulher, cozinheira em um restaurante, também tinha acabado de chegar. Eles aproveitam o tempo para jantar, conversar com os filhos e colocar a conversa em dia.

Jairzinho sonha em ser médico. André não quer tirar o sonho dele. Sabe que sua vida foi difícil e a do filho não será diferente. Mas agora há algo que em sua época não existia: “as cotas raciais”.

“Parece que agora ficou mais fácil ir pra faculdade, né?”, diz com um sorriso amarelo como alguém que ainda duvide da política social. “Gostaria de ver o Jairzinho médico, mas sei não se não terá que seguir os meus passos”.

Ele não gosta de falar em política. “Prefiro não me meter”, diz, mas a própria rotina é um ato político involuntário — um corpo negro sustentando a estrutura de um país que ainda carrega a escravidão no cotidiano.

O Brasil cresceu sobre mãos como as dele. Mudaram as máquinas, os materiais e os discursos, mas o alicerce continua o mesmo: um país que insiste em construir o presente com o corpo do passado.

E agora vê nas políticas de cotas e nas ações afirmativas uma forma de redesenhar a história do futuro.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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