Hospital

Ainda é madrugada quando Joana desperta com o barulho de goteira batendo no balde ao lado da cama. O barraco onde vive, no alto da Penha, aperta-se entre outros três, todos colados como se a própria favela tentasse se equilibrar no morro.

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A luz fraca da lâmpada pendurada por um fio desencapado ilumina o quarto estreito o suficiente para que ela encontre a blusa florida e a pequena bolsa onde guarda documentos e laudos médicos.

Com o braço dolorido da última sessão de quimioterapia, ela se apoia na parede antes de vestir a roupa. “Se eu não levantar cedo, perco a senha. E se eu perco a senha, perco a chance de continuar viva”, diz, enquanto ajeita o batom diante do espelho rachado.

O tumor na mama esquerda dói mesmo antes do sol nascer; a dor parece pulsar junto com o medo de ter descoberto a doença tarde demais.

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O morro está silencioso quando ela começa a descer as vielas. As pedras ainda estão úmidas da chuva da noite, e ela caminha devagar, segurando na grade enferrujada de uma casa vizinha.

A comunidade desperta aos poucos: uma panela batendo, um rádio ligado em volume baixo, um cachorro latindo para algum movimento distante. Joana sabe que o dia só será “normal” se não houver operação policial.

“Quando o caveirão sobe, eu volto pra casa. Já perdi consulta assim. O médico disse que não podia remarcar, mas eu não tinha escolha”, conta.

A violência do território atravessa a rotina de quem precisa acessar saúde pública e, para ela, cada deslocamento é também um cálculo de sobrevivência.

Na Avenida Brasil, o ônibus já vem lotado. Joana entra com cuidado, segura-se no corrimão e tenta controlar o enjoo que sempre acompanha a quimioterapia.

Mal coloca o pé no corredor e sente os olhares varrendo seu corpo — alguns rápidos, outros demorados, todos inescapáveis. “A gente sabe quando tão olhando demais”, diz, com a naturalidade de quem aprendeu a decifrar olhares antes das palavras.

Hospital

Ela finge não notar, mas percebe cada cochicho abafado e cada silêncio súbito que se forma quando passa. Enquanto o veículo segue pela pista esburacada, ela observa os uniformes de supermercados, restaurantes e lojas pendurados no corpo dos outros passageiros, lembretes diários das vagas que tentou e nunca conseguiu.

Depois da pandemia, quando perdeu o emprego como auxiliar de cozinha, nenhum currículo seu rendeu retorno. “Dizem que vão ligar. Nunca ligam”, afirma, olhando pela janela enquanto o ônibus avança pela manhã cinzenta da cidade.

A realidade dela se confunde como a de tantas outras pessoas travestis e transexuais no Brasil.  Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cerca de 90% das travestis e mulheres trans têm a prostituição como principal fonte de renda ou já passaram por ela, por falta de acesso ao mercado formal.

Mas Joana, embora faça parte da estatística que empurra tantas para a prostituição, nunca recorreu a ela. Ela vive de pequenos bicos e da ajuda ocasional da irmã: “Não é que eu não queira trabalhar. É que ninguém deixa”.

Ao chegar ao hospital, Joana respira fundo antes de entrar na recepção. Há meses o atendimento se tornou tão difícil quanto a própria doença. Quando procurou o posto de saúde pela primeira vez, ouviu da enfermeira: “Mas homem tem isso?”.

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Ela tentou explicar que era mulher e que sentia o caroço há semanas, mas foi encaminhada ao clínico geral. “Eu saí de lá humilhada. Pensei em desistir”, diz. A mamografia só foi feita meses depois e, como ela já imaginava, o tumor era grande.

Por falta de conhecimento, milhares de pessoas trans como Joana descobrem a doença tarde demais, uma vez que o protocolo oficial de rastreamento mamográfico do SUS é desenhado para “mulheres” em faixa etária específica entre 50 e 74 anos, não incluindo recomendações próprias para mulheres trans/travestis nas diretrizes nacionais de rastreio.

Essa fato revela o desconhecimento de que mulheres trans em uso de hormonioterapia têm risco de câncer de mama maior que homens cis, mas a ausência de fluxos específicos dificulta a prevenção e diagnóstico precoce.

Quando ela chega na recepção, senta-se na sala de espera. Após 30 minutos, ela ouve uma voz mecânica gritar: João Carlos!”. Ela fecha os olhos, respira fundo e levanta a mão. “Eu digo mil vezes que sou Joana. Mas é como se eu falasse com a parede.”

No SUS, o nome social é direito garantido por norma nacional desde 2009, mas, na prática, ainda é ignorado em muitas unidades, como registram pesquisas da Fiocruz.

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Durante a sessão de quimioterapia, ela olha pela janela do corredor. O soro pinga lentamente e o tempo parece se alongar junto com o efeito do remédio. “Eu achava que o câncer ia ser meu inimigo. Mas o pior é chegar aqui e ser tratada como se eu fosse um problema”, afirma.

Ao sair do hospital, Joana compra um salgado na calçada e tenta comer devagar, mas a náusea volta. Guarda o resto na bolsa “para mais tarde” e segue para o ponto de ônibus. O corpo dói, mas ela precisa subir o morro antes que o sol esquente demais.

Na subida, segura nos muros, conta os degraus e para por duas vezes para recuperar o fôlego. A vizinha da casa amarela vê o esforço e pergunta se ela precisa de ajuda. Joana sorri e responde: “Se eu parar, eu sento e não levanto, mô. Mas eu chego”.

Dentro do barraco, ela coloca a água para ferver e prepara uma sopa rala, a única refeição que o estômago aceita nos dias de tratamento.

Depois, pega o caderno onde anota exames, gastos e pequenas frases que coleciona para se lembrar de quem é. Mostra uma página e diz: “Escrevi isso ontem: ‘Eu existo, mesmo quando fingem que eu não existo’”. Joana fala sem raiva, mas com firmeza, como quem já se habituou a viver entre o que o país aceita e o que o país rejeita.

A tarde avança e a favela ganha som: motos subindo, crianças correndo, fogos ao longe anunciando movimentos que todos entendem sem perguntar.

Joana organiza sua pequena casa, separa as roupas que conseguirá lavar no tanque no dia seguinte e guarda os documentos em uma sacola plástica para não molhar. Ela olha para sua agenda, e não tem nenhuma cliente marcada.

Ela vive de bicos de manicure, mas desde que descobriu a doença, passou a perder clientes por conta do preconceito. A vida que já era difícil, se tornou um fardo quase insuperável em sua existência.

Quando o céu começa a escurecer, ela se senta na cama e pensa no futuro. “Eu queria um emprego. Só isso. Ter crachá com meu nome certo. Tratar meu câncer sem ter que provar que eu sou mulher. Isso não devia ser pedir demais.”

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Enquanto a noite toma o morro, Joana apaga a luz e deita com cuidado para não pressionar o lado dolorido do peito.

Lá fora, o Brasil que mais mata pessoas trans no mundo — como registrou o Dossiê ANTRA ao contabilizar 122 assassinatos de pessoas trans e travestis em 2024, a maioria mulheres trans, negras e pobres — segue indiferente ao que acontece entre aquelas paredes finas.

Mas Joana resiste. A cada consulta, a cada subida do morro, a cada vez que obriga o hospital a chamá-la pelo nome certo, ela empurra o país um milímetro adiante. “Eu só quero viver”, diz antes de fechar os olhos. “Viver do meu jeito, com meu nome, com meu corpo. Mesmo que o mundo diga que não.”

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista e editor-chefe da IA Dinheiro. Produz reportagens e conteúdos com foco em economia, democracia, desigualdade e políticas públicas.

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