Dólar
Economista e ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos Brics, Paulo Nogueira Batista Jr, durante o Fórum Acadêmico do Sul Global – 14 de novembro de 2025 | Crédito: Jiang Chenxing

Por Mauro Ramos do Brasil de Fato

O uso do dólar como arma geopolítica está acelerando a própria desdolarização. Países do Sul Global buscam alternativas para reduzir a dependência da moeda norte-americana nas transações internacionais, especialmente após o uso intensificado de sanções financeiras pelos Estados Unidos e Europa. Essa é a avaliação do economista e ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos Brics, Paulo Nogueira Batista Jr.

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Entre China e Rússia, quase a totalidade das transações já ocorre em moedas nacionais. No Brasil, 30% do comércio com a China já contorna o dólar, disse o economista em entrevista ao Brasil de Fato, durante o Fórum Acadêmico do Sul Global em Xangai.

Nogueira considera que transacionar diretamente em moedas nacionais, embora positivo, não oferece uma solução de longo prazo. Na sua avaliação é necessário avançar na discussão sobre a criação de uma arquitetura monetária alternativa, que não substituiria as moedas nacionais, mas ofereceria uma opção de reserva internacional fora do controle do Norte Global.

O economista destaca ainda as limitações do Banco dos Brics, que desde a guerra na Ucrânia não consegue operar com a Rússia – país membro fundador – devido à dependência do sistema financeiro ocidental.

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Confira a entrevista na íntegra a seguir:

Brasil de Fato: Como você avalia o processo de desdolarização em curso no mundo e quais são as possibilidades reais no médio prazo?

Paulo Nogueira Batista Jr.: A desdolarização já está em curso há alguns anos e avança com certa rapidez. A razão principal é que o dólar tem um inimigo muito poderoso, e esse inimigo não é a Rússia nem a China – são os Estados Unidos da América. Os americanos, e também os europeus com o euro, abusaram do privilégio de emitir moeda internacional para usar suas moedas como instrumento de punição, de sanção, de exclusão. O sistema financeiro ocidental virou uma arma geopolítica.

Os países observam isso, ninguém é tolo. Começam a encontrar maneiras de sair do dólar, contornar o euro. Uma das maneiras é transacionar em moedas nacionais, “bypassando” o dólar e o euro. Isso acontece em larga escala: entre China e Rússia, quase a totalidade das transações hoje são em rublos e renminbi. Na relação russo-indiana também. O sudeste asiático está avançando nessa direção. No Brasil com a China, 30% das transações já são em moedas nacionais.

Mas, contrariamente ao que se diz, transacionar diretamente em moedas nacionais é bom, porém insuficiente. Não gera uma solução sustentável. Precisamos passar para outra etapa do processo de desdolarização: criar uma moeda nova de reserva por parte do Sul Global.

Também se fala que o yuan não seria essa moeda que substituiria o dólar, em parte porque os chineses não têm interesse em internacionalizar massivamente sua moeda. Isso é assim?

É assim mesmo. Seria uma alternativa substituir parcialmente o dólar e o euro pelo renminbi. Mas os chineses hesitam, não estão convencidos de que têm condições e interesse em uma internacionalização em larga escala de sua moeda. Então essa alternativa existe parcialmente, mas fica um buraco. O dólar retrocede e não surge uma alternativa clara.

Daí que Brasil, Rússia, China e outros países do Sul Global poderiam se reunir para criar uma moeda em novas bases. É uma discussão difícil, técnica e politicamente. Mas qual é a alternativa? Continuar com esse sistema viciado que os americanos controlam? Não me parece boa alternativa para ninguém. Temos que ter imaginação e coragem para criar algo novo, ainda que isso desagrade Estados Unidos e Europa.

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Alguns economistas afirmam que não há possibilidades de criar uma moeda comum dos Brics. Você mencionou um sistema de pagamentos mútuos dentro do bloco. Isso seria mais factível do que uma moeda comum?

Duas coisas. Primeiro, o sistema de pagamentos alternativo ao sistema ocidental foi proposto pela Rússia no ano passado, quando presidiram o processo Brics. Foi endossado como base para futuros trabalhos pelos líderes em Kazan, mas não andou na presidência brasileira.

Um parêntese aqui: não adianta nada o presidente brasileiro, Lula, falar corajosamente no assunto se no campo da ação prática do Estado brasileiro e dos Brics não acontece nada. Os russos passaram uma bola redonda para o Brasil. O Brasil assumiu a presidência dos Brics em 2025 e nada de importante fez.

Mas os russos têm razão. Uma forma de avançar é sistematizar as transações em moedas nacionais através de um sistema de transmissão de mensagens e liquidação de pagamentos.

Agora, alguns economistas estão mirando no alvo errado porque ninguém está propondo criar uma moeda comum única que substituísse as nacionais dos Brics. Isso não é só difícil, é impossível. Não cumprimos os requisitos básicos para formar uma área monetária comum. A Europa tem o euro, mas nós não estamos pensando nisso.

Estamos pensando em criar uma arquitetura monetária alternativa, plurilateral, que representaria a criação de uma moeda para uso internacional sem substituir as moedas nacionais dos países participantes. É cansativo toda hora ouvir que não dá para criar uma moeda única, mas quem está falando nisso? Ninguém propôs isso. Precisamos de mais clareza conceitual e mais ousadia se queremos sair dessa armadilha.

Na sua fala aqui no fórum, o senhor comentou sobre o novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS. Apesar dos avanços que ele tem significado, ele ainda tem algumas limitações. Qual é a sua análise sobre o novo Banco de Desenvolvimento?

O Novo Banco de Desenvolvimento, mais conhecido como Banco dos Brics, foi a principal iniciativa institucional prática que os Brics tomaram em toda sua vida. Foi criado em 2015, quando eu estava como vice-presidente brasileiro. Nesses 10 anos, o Banco realizou coisas: tem um prédio espetacular em Xangai, quase 300 funcionários, aprovou muitos projetos, emitiu muitos bônus. Tem 10 membros agora e outros vão entrar, como Colômbia e Uzbequistão.

As limitações são importantes. O número de países membros cresceu pouco – não dá para rivalizar com os bancos do Ocidente com 10 ou 12 países. Estamos muito dependentes do dólar e do mercado ocidental de capitais. Precisaríamos abrir novas frentes: operar com moedas nacionais dos países membros, operar mais no mercado chinês, emitir mais em renminbi, ficar menos dependentes das agências de classificação de risco americanas – Moody’s, Standard & Poor’s, Fitch.

A situação mais grave é que o banco não consegue emprestar a um país membro fundador: a Rússia. Desde a guerra na Ucrânia, o banco não opera com a Rússia. Isso não pode durar sob pena de ferir a credibilidade do banco. Vou te dizer: quando criamos o banco há 10 anos, cometemos um erro estratégico. Não percebemos a profundidade da divisão geopolítica que viria. Desenhamos o banco para se beneficiar do mercado ocidental de capitais, de Wall Street, das agências americanas. Não nos preparamos para que esse mercado fosse fonte de vulnerabilidade.

É tão grave que o banco nem desembolsa parcelas previstas em contratos assinados antes da guerra. Ou seja, o sistema de sanções do Ocidente está levando um banco que criamos a romper contratos juridicamente perfeitos. E não faz operação nova nenhuma com a Rússia desde a invasão da Ucrânia.

Mas criamos um banco, está aí. Tem capacidade, instalações maravilhosas, projetos aprovados. Tem que deslanchar. Pode demorar, tem que ter paciência, mas temos que andar.

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Mudando um pouco o assunto, para falar um pouco das relações Brasil-China. Comercialmente as relações têm crescido, não pararam nem durante o governo Bolsonaro, pelo contrário, houve recorde das exportações brasileiras para a China. O que mudou foi a relação política, com o Lula vindo já nos primeiros meses do governo e mostrando uma vontade de talvez qualificar a relação econômica entre os dois gigantes. Quais são os caminhos para qualificar essa relação econômica do lado brasileiro?

A relação é forte do ponto de vista econômico e político. Há confiança recíproca. Ela se dá não só bilateralmente, mas em iniciativas conjuntas, sobretudo o Brics. A presidente brasileira do Novo Banco de Desenvolvimento é muito respeitada na China – foi condecorada com a mais alta condecoração que os chineses dão aos estrangeiros. Xi Jinping visitou o banco. Lula esteve aqui. Xi esteve na reunião do G20.

Talvez seja o melhor momento das relações Brasil-China na história, desde que o Brasil reconheceu a República Popular da China nos anos 70. Está sem dúvida entre os melhores momentos.

Mas tem um ponto fraco: a natureza assimétrica da relação comercial. O Brasil exporta commodities e importa manufaturas. Teríamos que requalificar essa relação para que seja menos colonial, menos centro-periferia. O Brasil precisa exportar produtos de maior valor agregado.

A China tem que aceitar que essa relação não precisa e não pode ser assim a longo prazo. A China deve fazer investimentos no Brasil, sim, mas para criar capacidade nova – não para comprar capacidade ociosa nem destruir capacidade existente em certos setores. Ou seja, administrar o fluxo de investimentos e comércio, não deixar só o critério do mercado, como a China faz.

A China administra sua economia. É uma economia socialista com características chinesas. O Brasil não vai imitar a China, nem pode, é outra realidade. Mas tem que observar o que a China faz. E como a China sabe que comércio e investimentos têm que ser administrados, ela vai achar inteiramente natural que o Brasil queira estabelecer um novo padrão na relação daqui para frente.

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Espaços como este, onde intelectuais, analistas de diversas áreas do Sul Global estão dialogando, especialmente aqui na China, são relativamente novos. Como você analisa este espaço do Fórum Acadêmico do Sul Global?

Este é o terceiro encontro anual do Fórum Sul Global, o primeiro do qual participo. O Sul Global é uma categoria importante, muito genérica, mas também chamada de maioria global – e aí chamamos o Ocidente de minoria global, que é o que eles são. O Sul Global tem mais de 85% da população mundial.

Essa maioria global manda para cá pessoas para conversar com os chineses, com os russos, entre nós – brasileiros, latino-americanos, africanos, outros países asiáticos. A Europa também está aqui. Croácia está aqui. Rússia está aqui, claro.

É uma confluência de pessoas de várias origens e especializações, e é um momento muito propício para isso. Por quê? Porque o Ocidente, depois de ter criado muita coisa ao longo dos últimos séculos – nem sempre boas –, agora se mostra incapaz de criar. É reativo. É capaz de bloquear, de prejudicar, de destruir, mas criar mesmo, não.

Criação de coisas novas no mundo, novas propostas, novas ideias, tem que partir do nosso grande grupo. Ouvindo todo mundo – países grandes, médios, pequenos. Claro que os grandes têm mais massa crítica. Países como Brasil, Rússia, China, Índia vão ter mais condições de contribuir para esse debate, que tem que ser de qualidade, inovador e destemido. Porque se ficarmos preocupados com a reação dos americanos e europeus, não vamos fazer nada.

Achei muito positivo que a China hospede esse fórum, e que tenha uma participação vibrante de pessoas de grande parte dos países do Sul Global. Todos não, porque são 140 países, mas uma parte significativa está aqui.

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