Brasília (DF) — Em uma sessão marcada por atropelos regimentais, repressão física e expulsão de jornalistas, a Câmara dos Deputados aprovou às 2h26 desta quarta-feira (10) o texto-base do chamado PL da Dosimetria, que reduz significativamente as penas de condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro. A mudança pode permitir que Jair Bolsonaro, condenado a mais de 27 anos por comandar a tentativa de ruptura institucional, deixe a prisão em pouco mais de dois anos — um efeito que, embora negado por seus articuladores, foi interpretado como anistia disfarçada pelo campo progressista.
A votação, conduzida por Hugo Motta (Republicanos-PB), ocorre após meses de pressão do centrão e abre espaço para a reabilitação política de figuras condenadas pela mais grave afronta ao Estado Democrático de Direito desde a redemocratização. O projeto segue agora para o Senado, onde Davi Alcolumbre (União-AP) já sinalizou disposição para votá-lo ainda em 2025.
O clima que precedeu a votação foi de tumulto e violência. Em protesto contra seu processo de cassação, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) foi retirado à força da Mesa Diretora por policiais legislativos.
Deputados como Sâmia Bomfim, Célia Xakriabá, Rogério Correia e Alencar Santana foram agredidos ao tentar impedir a ação, num episódio que evocou práticas típicas de regimes em erosão democrática.
A segurança da Casa cortou a transmissão da TV Câmara e expulsou a imprensa do plenário — medida inédita e amplamente criticada. Para a oposição, o gesto simboliza o avanço de um Congresso disposto a flexibilizar garantias democráticas para favorecer interesses políticos imediatos.
A manobra para levar o projeto ao plenário surpreendeu até aliados. A decisão foi tomada por Motta ainda na manhã de terça-feira (09) e acelerada em regime de urgência, atropelando debates e esvaziando a participação da sociedade.
A votação se estendeu madrugada adentro e terminou com 291 votos favoráveis e 148 contrários, após a rejeição de todos os destaques.
Para integrantes do centrão, a mudança legislativa atua como resposta indireta à crescente influência de Flávio Bolsonaro na disputa interna da direita, enquanto para o bolsonarismo funciona como alívio imediato a dezenas de correligionários presos.

No texto aprovado, o crime de golpe de Estado passa a absorver o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito — mudança que reduz, de saída, parte das penas aplicadas.
O projeto também flexibiliza a progressão de regime, diminuindo o tempo mínimo de cumprimento para 1/6 da pena e permitindo que dias trabalhados em regime domiciliar com tornozeleira contem para abatimento. A combinação dessas regras faz com que condenações antes superiores a oito anos possam resultar em menos de três anos de regime fechado.
Na prática, mesmo sem usar o termo “anistia”, o Congresso constrói um caminho que permite a saída antecipada de golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal.
Ao reduzir penas de quem atentou contra o próprio Congresso, a Casa envia ao país a mensagem de que golpes podem ser perdoados quando interesses políticos se alinham. Juristas críticos ao projeto afirmam que a mudança desfigura a resposta do Estado a ataques à ordem constitucional e estimula a reincidência.
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Nos bastidores, a movimentação evidenciou fissuras na direita. Flávio Bolsonaro insinuou que desistiria de sua pré-candidatura presidencial caso o pai recebesse anistia, movimento visto no centrão como tentativa de chantagem.
O gesto irritou líderes partidários e reforçou a disposição de esvaziar o clã Bolsonaro, mantendo apenas o “degrau possível”, como definiu Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), para beneficiar apoiadores presos.
O próprio Jair Bolsonaro, segundo aliados, avalizou a redução de penas, admitindo que a medida não resolveria sua situação, mas atenderia ao núcleo duro do bolsonarismo.
A disputa evidencia a frágil arquitetura política de um Congresso pendular, capaz de endurecer o discurso público em defesa da democracia enquanto negocia, a portas fechadas, o alívio de condenações por atos antidemocráticos.
Ao mesmo tempo, mostra que o centrão — desconfortável com a ascensão eleitoral de Flávio Bolsonaro — utiliza a pauta como instrumento para limitar o poder de barganha do clã.
O projeto segue agora ao Senado, onde deve ser votado ainda neste ano. Caso aprovado, caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se veta a medida, total ou parcialmente. A esquerda articula resistência e avalia acionar o Judiciário para contestar a constitucionalidade do projeto.
A aprovação noturna da nova dosimetria não apenas fragiliza a resposta institucional ao golpismo, mas serve de alerta sobre a capacidade de retrocesso quando segmentos do sistema político se unem para proteger aliados — mesmo à custa da democracia.











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