Rio de Janeiro (Brasil) — Quase 3,1 milhões de moradores de favelas brasileiras vivem em ruas onde ambulâncias, caminhões de coleta de lixo ou veículos de emergência simplesmente não conseguem entrar, segundo dados do suplemento especial do IBGE divulgado nesta sexta-feira (5). As informações, coletadas durante o Censo 2022, mostram que 19,1% da população dessas comunidades está restrita a vias que permitem apenas o trânsito de motos, bicicletas ou a circulação a pé — uma condição que evidencia limites estruturais e históricos da urbanização desigual no país.
Esse recorte mostra o contraste com o restante das cidades brasileiras, onde apenas 1,4% da população vivem em locais sem acesso para carros. Entre os moradores de áreas formais, 93,4% residem em ruas capazes de receber caminhões, ônibus ou veículos de carga.
Nas favelas, esse índice cai para 62%, demonstrando que a mobilidade e o acesso a serviços não dependem apenas de geografia, mas sobretudo de escolhas políticas cumulativas.
O levantamento do IBGE amplia o entendimento sobre a precariedade da infraestrutura urbana nessas localidades. O instituto considera como vias não apenas ruas formais, mas também becos, vielas, escadarias e palafitas — formas de circulação que surgiram como resposta espontânea das próprias comunidades à ausência de planejamento estatal.
Para Filipe Borsani, chefe do Setor de Pesquisas Territoriais do IBGE, essa característica tem impacto direto na oferta de serviços públicos, já que a estrutura física das vias impede que equipamentos essenciais cheguem até as residências.
A pesquisa revela ainda desigualdades internas nas próprias favelas. Enquanto em comunidades com mais de 10 mil habitantes a presença de pavimentação atinge 86,7%, nas menores, com até 250 moradores, apenas 65,8% das vias têm algum tipo de revestimento.
Já no conjunto das cidades brasileiras, 91,8% da população vive em áreas pavimentadas. A Bahia é a única unidade da federação em que a pavimentação dentro de favelas supera a das áreas formais, um dado que o IBGE sugere estar ligado a processos de autoconstrução comunitária.

Outro indicador que aprofunda o retrato das desigualdades é a presença de calçadas. Fora das favelas, 89,3% dos moradores contam com calçada em frente ao domicílio; nas favelas, apenas 53,9%. Em comunidades menores, o índice cai para cerca de 50%.
Já em áreas mais densas, como favelas com mais de 10 mil moradores, chega a 61,4%. A Rocinha, maior favela do país, apresenta um dado alarmante: apenas 12,1% dos moradores vivem em vias com calçadas, e somente 0,1% têm acesso a calçadas sem obstáculos — condição praticamente inexistente para cadeirantes, idosos e pessoas com mobilidade reduzida.
O cenário se repete quando se observa a existência de rampas de acessibilidade. Fora das áreas informais, 18,5% dos moradores vivem em ruas com rampas; nas favelas, apenas 2,4%.
A disparidade mostra que, embora as desigualdades urbanas sejam amplamente conhecidas, elas se tornam ainda mais evidentes quando o recorte considera mobilidade, acessibilidade e direitos básicos ao deslocamento seguro.
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A iluminação pública aparece como o equipamento mais presente nas favelas, alcançando 91,1% dos moradores. Ainda assim, grandes comunidades como a Rocinha registram índices significativamente inferiores: apenas 54,3% das vias têm poste de luz identificado pelos recenseadores.
A presença de iluminação não garante qualidade do serviço, mas evidencia que mesmo equipamentos básicos são distribuídos de maneira desigual.
Para Borsani, os resultados confirmam uma “exclusão histórica” na distribuição de infraestrutura urbana no Brasil. Ele destaca que o poder público tende a concentrar investimentos em áreas formais e de maior renda, deixando comunidades inteiras dependentes de soluções improvisadas.
Já Letícia Giannella, gerente de Favelas e Comunidades Urbanas do IBGE, afirma que os dados funcionam como ferramenta de reivindicação: ao quantificar carências de infraestrutura, ampliam a capacidade de mobilização de moradores e organizações locais.
Os números reforçam, portanto, que a precariedade urbana não é um fenômeno espontâneo, mas o resultado direto de políticas públicas fragmentadas, investimentos seletivos e ausência de planejamento integrado.
Em um país onde 16,4 milhões de pessoas vivem em favelas, garantir vias acessíveis, calçadas seguras, iluminação adequada e pavimentação deveria constituir não apenas um objetivo de gestão, mas um compromisso básico de equidade urbana.



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