Mortes de negros
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

São Paulo (SP) — O professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão Arns, Thiago Amparo, afirmou que o próprio sistema jurídico brasileiro tem sido usado para justificar e racionalizar mortes cometidas contra a população negra, operando como engrenagem que legitima a violência estatal. A declaração foi feita nesta terça-feira (18), durante o debate “Racismo, segurança pública e democracia” na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em um contexto em que indicadores de letalidade policial permanecem concentrados entre jovens negros de periferias.

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Amparo apresentou resultados de estudos conduzidos pelo Centro de Pesquisa de Justiça Racial e Direito da FGV, que investigam a atuação do Judiciário em casos que envolvem agentes de Estado.

Segundo ele, a ideia de que a brutalidade policial estaria de um lado, enquanto o sistema jurídico operaria com neutralidade do outro, não se sustenta. O professor defende que regras e dispositivos legais acabam, muitas vezes, funcionando como justificativa para práticas que resultam em mortes evitáveis.

“Não é que exista uma lei que funciona de um lado e uma barbárie de outro. Muitas vezes, o próprio sistema jurídico racionaliza a barbárie por meio de regras jurídicas”, afirmou.

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Um exemplo é a aplicação seletiva de dispositivos de legítima defesa, que tendem a proteger agentes do Estado mesmo em situações evidentemente desproporcionais — como no caso do músico Evaldo Rosa, morto com 257 tiros disparados por militares do Exército em 2019. Em 2024, o Superior Tribunal Militar reduziu as penas dos oito militares condenados.

Durante o debate, o ouvidor da polícia de São Paulo, Mauro Caseri, reforçou que a letalidade policial tem marca racial clara e concentra-se em territórios específicos. Jovens negros de 19 a 29 anos são as principais vítimas.

Caseri apresentou ainda outro dado alarmante: 95% dos homicídios cometidos por policiais são arquivados pelo Ministério Público paulista. Nos 5% que seguem para julgamento, 95% resultam em absolvição. “Esse índice de arquivamento é assustador”, disse.

Para o ouvidor, medidas simples de transparência e controle reduzem a violência, como a instalação de câmeras corporais na Polícia Militar.

Ele defende que o uso generalizado dos equipamentos diminui mortes de civis e de policiais, porque força o cumprimento de protocolos e reduz abordagens arbitrárias. A ausência de preservação de locais de crime, que compromete laudos periciais e dificulta responsabilização, é outro fator que perpetua impunidade.

Mortes de negros
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Amparo também chamou atenção para violações de normas processuais e para o uso abusivo da “entrada franqueada” — quando policiais alegam que o morador permitiu o ingresso em casa, mesmo sem mandado.

Segundo a pesquisa “Suspeita fundada na cor” (FGV-2023), diversas condenações por tráfico de drogas envolveram provas obtidas de forma irregular, enquanto pedidos de anulação feitos pela defesa eram sistematicamente rejeitados.

Outra investigação citada pelo professor, “Mapas da Injustiça” (FGV-2025), analisou 800 casos de mortes decorrentes de intervenção policial em São Paulo e concluiu que 85% das vítimas não tinham exame de pólvora realizado.

Em 40% dos corpos havia sinais de agressão anterior à morte, como hematomas e estrangulamento. A pesquisa revela falhas graves nas etapas de investigação e perícia, que impedem reconstrução objetiva dos fatos e favorecem narrativas oficiais que raramente podem ser confrontadas por outras provas.

A palavra do policial, observa o pesquisador, tende a se converter na principal prova absolutória.

“Como você não tem nenhum outro elemento, acaba caindo na própria palavra dos policiais. Há um referendo do que o policial diz, que é o que o Ministério Público diz e é o que o juiz diz”, afirmou.

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A ausência de elementos probatórios externos cria um ciclo institucional que normaliza mortes e protege agentes envolvidos em execuções e abusos.

Para Amparo, essa dinâmica não é falha isolada, mas parte de um projeto político. Ele cita “opacidade de dados”, seletividade na implementação de câmeras e lacunas na preservação de cenas de crime como componentes estruturantes de um modelo que define, na prática, que vidas são protegidas e que vidas são descartáveis.

Essa seletividade, afirma, tem raízes profundas e reflete continuidades da violência de Estado desde a ditadura militar.

“Mesmo na democracia, tem ainda a preservação de muitas dessas barbáries”, disse. O pesquisador argumenta que o país vive simultaneamente sob regime democrático e sob práticas que negam direitos fundamentais à população negra.

Esse descompasso, segundo ele, só será superado com reformas institucionais que enfrentem diretamente o racismo estrutural presente nos sistemas de justiça, segurança e fiscalização.

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A Redação IA Dinheiro produz reportagens interpretativas e mantém cobertura contínua em Economia, Política, Sociedade, Mundo e Sustentabilidade.

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