O fim da ditadura militar trouxe de volta as ruas, a esperança e o voto. Mas não trouxe estabilidade. O país que recuperava a democracia era o mesmo que havia herdado uma economia endividada, com inflação em alta e uma estrutura produtiva incapaz de sustentar o crescimento. A conta do milagre econômico chegou na década de 80, e ela não foi pequena. O Brasil que se reencontrava politicamente se perdia economicamente — e essa contradição moldaria os anos seguintes.
A crise tornou-se o cenário permanente. A dívida externa, que alimentara o milagre, transformou-se numa âncora que arrastava o país para baixo. Quando os Estados Unidos elevaram os juros, o crédito internacional ficou caro e a economia brasileira travou. O crescimento desapareceu, a produção recuou e a inflação assumiu lugar de protagonista. Os preços mudavam toda semana, às vezes todo dia. A hiperinflação corroía salários antes que chegassem ao bolso dos trabalhadores.
Érico Azevedo Martins de Aguiar, em estudo do Instituto de Economia da Unicamp (2011), lembra que “a década de 80, conhecida como ‘década perdida’, apresentou expressiva redução do investimento e da renda per capita”. As promessas da democratização precisavam competir com a urgência de encher a geladeira. Um país que sonhava com liberdade descobria que não basta votar: é preciso comer.
A política econômica tornou-se uma sucessão de planos de emergência — Cruzado, Bresser, Verão — cada um com um nome novo e uma desilusão já conhecida. O congelamento de preços trouxe euforia e escassez; a criação de novas moedas trouxe esperança e descrédito. A população, recém-liberta da censura, passou a conviver com a lógica do improviso. A democracia nasceu sob a síndrome do curto prazo.
Ao mesmo tempo, o Estado, antes instrumento de poder dos militares, entrava em xeque. A sociedade queria cidadania, mas o governo não tinha como financiá-la. O arrocho fiscal era tratado como inevitável, e o setor público começou a ser descrito não como solução, mas como problema. O discurso da eficiência ganhou força. A crise era atribuída ao tamanho do Estado — e não aos erros do modelo autoritário que o usara para crescer sem repartir.
O economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, que seria ministro anos depois, analisou esse processo em Crise do Estado e reforma gerencial (FGV, 1996): a redemocratização coincidiu com um momento em que o Estado se encontrava “frágil, em situação de quase insolvência fiscal”, pressionado pela dívida e pela necessidade de responder às demandas sociais reprimidas pela ditadura. Para recuperar o país, era preciso reorientar o Estado — mas o rumo dessa reforma se tornaria alvo de disputa.
Com a volta da liberdade, vieram as vozes que denunciaram o custo social do milagre. A recessão não era apenas econômica: era moral. A desigualdade, que já era alta sob os militares, tornou-se mais visível. A explosão da informalidade, o avanço da pobreza urbana e o crescimento das periferias expuseram as falhas de um país que se modernizou para poucos. A redemocratização revelou o que a censura havia escondido: não havia projeto coletivo.

A esperança de um novo Brasil desembarcou com Tancredo Neves, que não chegou a governar. Sarney assumiu em seu lugar e enfrentou a fúria da inflação. A Constituinte de 1988 — marco da cidadania — colocou na Constituição a saúde universal, a educação como direito e a seguridade social. Foi um avanço monumental. Mas a carta de direitos não veio acompanhada de uma carta de financiamento. O Brasil conquistou o futuro sem pagar por ele.
O Estado se viu dividido: ampliar o atendimento social ou estabilizar a economia? Fazer as duas coisas exigiria planejamento e arrecadação progressiva — mas o sistema tributário continuou penalizando o consumo e aliviando o patrimônio. A desigualdade tributária não era exceção: era regra. Como afirmava Maria da Conceição Tavares, “a crise brasileira é, também, crise do Estado”, que se tornou incapaz de coordenar o desenvolvimento ao mesmo tempo em que se responsabilizava por suprir o que o mercado não oferecia.
A política se contaminou pela economia — e vice-versa. Os planos de estabilização precisavam de apoio popular, mas fracassavam antes de entregar resultados. A hiperinflação colocou o Brasil na encruzilhada: ou o país reencontrava uma base produtiva e fiscal sólida, ou seria empurrado para as reformas de mercado que ganhavam força no mundo com Reagan e Thatcher.
Foi nesse ambiente que Fernando Collor ascendeu ao poder, com um discurso de modernização radical. Jovem, midiático, autoconfiante, prometia romper com o que chamava de “marajás” do setor público. Sua agenda não era apenas econômica: era ideológica.
A abertura ao capital estrangeiro, as privatizações iniciais e a desregulamentação eram tratadas como o preço da modernidade. O impeachment chegaria em 1992. Mas sua política já havia refeito o mapa do poder econômico brasileiro.
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Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, a estabilização monetária finalmente veio com o Plano Real. Mas a lógica de governo permaneceu condicionada à crise. Como observa o cientista político André Singer em Os sentidos do lulismo (2012), a democracia brasileira nasceu com “a marca do ajuste permanente”, uma estrutura em que a governabilidade depende da confiança do mercado e do cumprimento de metas que limitam o poder de planejamento do Estado. Nascia ali uma democracia presa ao curto prazo econômico — e não ao longo prazo social.
Ao final da transição, o Brasil tinha eleições livres, Constituição cidadã e imprensa sem censura. Mas continuava com baixo investimento público, alta desigualdade e limitada capacidade de formular um projeto de desenvolvimento. O Estado democrático herdou o país que o autoritarismo deixou: endividado, dependente e fragmentado. A liberdade voltou antes da prosperidade.
A década de 90 inauguraria o próximo capítulo — o da privatização e da globalização financeira. A democracia sobreviveria, mas o Estado continuaria encolhendo. O país que não teve um projeto durante o milagre também não teve um durante a transição. O modelo mudara, mas a fragilidade permanecia. O Brasil que aprendeu a votar ainda precisava aprender a se desenvolver.
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