São Paulo (SP) — Um levantamento inédito do Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da FGV Direito SP, em parceria com o Geledés – Instituto da Mulher Negra, revela que a normativa climática global ignora, de forma sistemática, a dimensão racial da crise ambiental. O estudo, que mapeou 115 documentos internacionais entre 1992 e 2025, mostra que apenas 23% mencionam afrodescendentes, e que 95% dessas citações estão em textos sem força legal. A pesquisa foi divulgada às vésperas da COP30, em Belém, e chega durante o Mês da Consciência Negra, ampliando o debate sobre o racismo ambiental e o papel da população negra na transição ecológica.
O levantamento intitulado A raça e o gênero da justiça climática: mapeando desigualdades na normativa global analisou tratados, relatórios e resoluções de organismos multilaterais, incluindo a Convenção do Clima (UNFCCC), o IPCC e o Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O resultado é contundente: apenas dois dos 115 documentos analisados — equivalentes a 1,7% do total — possuem caráter vinculante e abordam explicitamente a interseção entre raça e clima. A constatação evidencia um padrão de invisibilidade institucional que exclui afrodescendentes das decisões sobre financiamento, mitigação e adaptação climática.
Para o professor Thiago Amparo, coordenador do centro de pesquisa da FGV, “a regulação global sobre o clima convive com uma ambiguidade: reconhece o problema, mas evita responsabilizar os Estados”.
Segundo ele, a ausência de dispositivos obrigatórios revela uma desigualdade estrutural que atravessa o próprio multilateralismo. “O que está em jogo é quem tem direito a viver com dignidade em um planeta em colapso, e quem continua invisível nas mesas onde se decide o futuro”, afirma.
O estudo também revela o impacto racializado da crise climática no Brasil. Dados do IBGE e do levantamento indicam que 55% das pessoas que vivem em áreas de risco de deslizamento são negras, embora representem 37% da população nas regiões analisadas.
Nas enchentes de 2023, mais de 70% das vítimas fatais eram mulheres negras e crianças. Esse retrato reforça o conceito de racismo ambiental, que descreve como políticas públicas neutras em aparência acabam reproduzindo desigualdades raciais e territoriais profundas.
Para Mariana Belmont, assessora de Clima e Racismo Ambiental do Geledés, a COP30 precisa ser um ponto de virada. “Raça e gênero devem ser critérios estruturantes da justiça climática. Não basta incluir as palavras nos discursos — é preciso transformar em compromisso jurídico e político”, defende.

O estudo propõe medidas concretas: inserir o termo “afrodescendentes” nos documentos finais da conferência, garantir financiamento do Fundo de Perdas e Danos a comunidades quilombolas e ribeirinhas e incluir especialistas negros nos comitês técnicos da ONU.
O momento político amplia o alcance da denúncia. Novembro, mês dedicado à Consciência Negra, traz de volta a memória das lutas contra a exclusão e o apagamento histórico da população negra. No campo ambiental, essa luta ganha novo significado: a disputa por reconhecimento também é uma disputa por sobrevivência.
Enquanto o discurso climático global fala em “transição justa”, milhões de pessoas negras continuam expostas a desastres, à insegurança hídrica e à marginalização territorial. O desafio é fazer com que a transição energética não repita a lógica colonial que historicamente concentrou recursos e poder.
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A invisibilidade apontada pela pesquisa dialoga com uma questão central da COP30: o financiamento climático. O acesso a esses recursos continua desigual, concentrado em países e grupos com maior capacidade técnica e política.
Por isso, incorporar raça e gênero nesse debate significa questionar quem decide, quem recebe e quem fica de fora. A justiça climática, entendida em sua plenitude, depende da redistribuição não apenas de carbono, mas de poder.
Nesse sentido, o estudo da FGV e do Geledés recoloca a questão racial no centro da agenda climática e sugere uma mudança de paradigma: enfrentar o aquecimento global não é apenas reduzir emissões, é reconstruir as bases éticas e sociais do desenvolvimento. Em um mês dedicado à memória e à reparação, o relatório lembra que o futuro sustentável também precisa ser antirracista.











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