Rio de Janeiro (RJ) — A escritora Ana Maria Gonçalves foi empossada na cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL) na noite da última sexta-feira (7), tornando-se a primeira mulher negra a integrar a instituição em seus 128 anos de história. Reconhecida pela obra Um Defeito de Cor, considerada uma das narrativas mais contundentes sobre a diáspora africana e a formação racial do Brasil, Ana Maria entra na Casa de Machado de Assis como símbolo de uma correção histórica há muito aguardada.
A cerimônia ocorreu no Petit Trianon, sede da ABL, no Rio de Janeiro, e foi transmitida ao vivo pelo site e pelo canal da instituição no YouTube. A escritora foi recebida pela acadêmica Lilia Schwarcz, recebeu o colar das mãos de Ana Maria Machado e o diploma do também imortal Gilberto Gil.
O evento contou com um jantar de inspiração africana e uma apresentação musical em cortejo pelas ruas do centro do Rio, em homenagem às origens e à trajetória da autora.
Nascida em Ibiá (MG), em 1970, Ana Maria Gonçalves sucede o professor e gramático Evanildo Bechara, falecido em maio deste ano. Roteirista, dramaturga e professora de escrita criativa, é autora de Ao lado e à margem do que sentes por mim e, sobretudo, de Um Defeito de Cor, obra vencedora do prêmio Casa de las Américas em 2007.
O romance de mais de 900 páginas é um mergulho na memória escravocrata do país, contado pela voz de uma mulher negra que atravessa o século XIX em busca do filho vendido como escravizado.
A escolha de Ana Maria para a ABL é mais do que um reconhecimento literário. É um marco de reparação simbólica. Desde sua fundação, em 1897, a Academia permaneceu um espaço essencialmente masculino, branco e elitizado — reflexo direto da estrutura social brasileira. A presença de uma mulher negra rompe essa tradição e recoloca a instituição em diálogo com o país real, diverso e plural que existe fora de seus muros.
A posse de Ana Maria Gonçalves expressa também o amadurecimento de uma nova consciência cultural no Brasil. Sua trajetória literária — marcada por rigor estético e compromisso político — reintroduz na literatura acadêmica a perspectiva afro-brasileira não como exceção, mas como eixo constitutivo da identidade nacional. É a consagração de uma autora que devolve voz às narrativas silenciadas pela história oficial.

Do ponto de vista social, o ingresso de uma mulher negra na ABL representa a democratização simbólica de um espaço que sempre foi visto como inacessível.
Ao abrir suas portas, ainda que tardiamente, a Academia reconhece o valor da literatura produzida nas margens — aquela que fala das dores, das resistências e das múltiplas brasilidades que nunca couberam na versão única do cânone. É um gesto que fortalece o pacto civilizatório e cultural em torno da diversidade.
A presença de Ana Maria também dialoga com a ideia de que o progresso de uma nação não se mede apenas em indicadores econômicos, mas na ampliação de sua consciência histórica.
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A ascensão simbólica de vozes negras ao centro da cultura institucional é parte desse desenvolvimento: o de um país que aprende a reconhecer sua própria pluralidade como ativo de futuro.
Ao fim da cerimônia, a emoção não era apenas literária. O público via, no salão iluminado do Petit Trianon, a concretização de um Brasil que se reinventa por dentro. A cadeira 33 não se tornava apenas o assento de uma nova imortal, mas o espaço de uma nova memória que reconhece, enfim, que a língua portuguesa no Brasil também é negra, feminina e resistente.











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