O Brasil dos anos 1970 parecia viver sua maior era de otimismo. Os índices de crescimento batiam recordes, a propaganda oficial anunciava “Brasil, ame-o ou deixe-o” e as capas de revista exaltavam o ministro Antônio Delfim Netto como o arquiteto do milagre econômico.
A narrativa era sedutora: depois do golpe de 1964, o país finalmente teria deixado para trás o atraso e entrado na era da modernidade. Na prática, o regime militar havia transformado o crescimento em ideologia e o Estado em instrumento de controle social. O PIB subia, mas o preço era pago com silêncio e desigualdade.
Em seu discurso de posse no Ministério da Fazenda, em 1969, Delfim Netto prometeu disciplina e estabilidade. “Este ano representará um marco na luta secular que o país trava contra a inflação”, afirmou.
A frase sintetizava a ambição tecnocrática de um governo que acreditava poder administrar a economia como uma planilha, sem participação popular nem transparência. Para conter preços e atrair capital estrangeiro, o regime congelou salários, abriu crédito externo e reprimiu greves. O controle do custo de vida passou a ser uma questão de segurança nacional — e o trabalhador, uma variável do ajuste.
O milagre econômico — como ficaria conhecido o período entre 1968 e 1974 — foi, ao mesmo tempo, o auge e a contradição do regime. O PIB cresceu mais de 10% ao ano, as estradas e usinas se multiplicaram, e as estatais se expandiram.
Mas a prosperidade tinha um lado oculto. O crescimento foi financiado por um maciço endividamento externo, num contexto em que bancos internacionais ofereciam crédito farto e barato. O país se modernizava com dinheiro emprestado e mão de obra barata. O arrocho salarial era política deliberada, justificada como instrumento para conter a inflação e garantir a “competitividade” nacional.
A economista Maria da Conceição Tavares e o então jovem José Serra publicaram em 1971 o ensaio Além da Estagnação, no qual desmontaram o mito do milagre.
“O chamado milagre econômico é, em essência, o resultado de uma política de concentração de renda e de transferência de recursos do trabalho para o capital”, escreveram.
A análise mostrava que o crescimento beneficiava uma minoria de grandes empresas — nacionais e estrangeiras — enquanto o consumo popular se estagnava. A produtividade crescia, mas os salários reais caíam. O Brasil avançava para dentro de uma modernização excludente.

A repressão política completava o círculo. O AI-5, decretado em 1968, dissolveu o Congresso e instaurou a censura prévia. A política econômica e a violência de Estado caminharam juntas: o mesmo governo que abria rodovias e implantava polos industriais também perseguia jornalistas, cassava professores e prendia operários.
O silêncio era condição do progresso. O economista Celso Furtado, exilado após o golpe, advertia em 1974 que “crescer sem democracia é condenar o país à deformação social”. Sua frase resumiria a contradição da época: o regime que prometia ordem produzia desigualdade, e o crescimento virou um projeto sem povo.
A ditadura cultivava uma estética do milagre. Comerciais de TV exibiam crianças uniformizadas cantando o hino, obras faraônicas e slogans patrióticos. O Estado parecia onipotente, mas dependia de dólares emprestados. A dívida externa, que era de US$ 3,1 bilhões em 1964, saltou para quase US$ 50 bilhões no fim da década de 1970.
“A aceleração da dívida externa brasileira a partir de 1968 esteve diretamente ligada à estratégia de crescimento econômico do regime militar”, escreveu Paulo Duarte da Cruz na Revista Lua Nova (n.º 91, 2014, CEDEC).
O crédito internacional alimentava a expansão, enquanto o país se tornava cada vez mais vulnerável às crises externas. O economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, em Capital humano ou capitalismo selvagem? (IPEA, 2017), descreve aquele ciclo como um “crescimento sem redistribuição”.
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O Estado investia em infraestrutura e indústria de base, mas negligenciava políticas sociais e educação. A concentração de renda era estrutural, não um efeito colateral. A parcela dos 10% mais ricos chegou a absorver quase metade da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres ficavam com menos de um quinto. O milagre, conclui Bastos, foi estatístico: prosperidade nas planilhas, precariedade nas ruas.
Enquanto isso, o milagre alimentava uma nova elite tecnocrática. O regime formou uma geração de economistas e administradores fiéis à doutrina da eficiência e do crescimento a qualquer custo. O Estado planejava, mas sem ouvir a sociedade.
O sistema de crédito do BNDES financiava projetos de grandes grupos industriais; o Proálcool e o Programa Nuclear simbolizavam o poder do planejamento centralizado. Mas o mesmo governo que erguia hidrelétricas e montadoras mantinha a educação pública subfinanciada e o salário mínimo em queda real. Era o paradoxo de um Estado forte que servia a poucos.
Thomas Skidmore, em Brasil: de Castelo a Tancredo (1988), observa que o regime militar construiu uma narrativa de sucesso que dependia da censura para sobreviver. “O controle da informação era essencial para sustentar a ideia de milagre”, escreve.

Os jornais evitavam números de inflação e desemprego; as estatísticas oficiais eram filtradas antes de chegar ao público. O milagre era tanto uma política econômica quanto uma operação de marketing. A censura, mais do que um instrumento político, tornou-se um componente da própria política econômica.
Os anos finais da década de 1970 trouxeram o despertar do custo real. A alta dos juros nos Estados Unidos e o segundo choque do petróleo elevaram brutalmente o custo da dívida. O governo Geisel tentou conter o impacto com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, ampliando ainda mais o investimento estatal. Mas o país já estava endividado até o limite.
O crescimento desacelerou, a inflação voltou e as greves do ABC anunciaram o esgotamento do pacto autoritário. O mesmo Estado que havia garantido prosperidade agora não conseguia garantir estabilidade.
Quando o milagre terminou, o Brasil ficou com uma economia concentrada e um Estado hipertrofiado, mas sem capacidade de resposta social. O modelo que nascera da repressão terminava em estagnação.
Como diria Maria da Conceição Tavares anos depois, “o Estado não é um problema, é uma necessidade — é ele quem garante a capacidade de o país planejar o seu futuro”. A ditadura usou o Estado como máquina de poder, não como instrumento de cidadania. E o preço da eficiência autoritária foi uma década perdida de desigualdade e dependência.
O “milagre econômico” foi, em última análise, uma ilusão construída sobre o medo. Crescemos, mas sem repartir; modernizamos, mas sem democratizar. O silêncio imposto nas redações e nas fábricas foi o alicerce de um progresso que não chegou às maiorias.
Ao fim da ditadura, o Brasil parecia grande no papel e frágil na realidade. O país que aprendeu a crescer sem democracia ainda teria de aprender, décadas depois, a desenvolver-se com ela.
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