Comunitarismo

Ao fim do século XX, as democracias ocidentais enfrentavam um dilema silencioso. O autoritarismo havia sido derrotado, o Estado de bem-estar parecia consolidado e o consumo globalizado oferecia a ilusão de liberdade plena.

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Mas, por baixo da prosperidade, crescia um sentimento de desconexão. Cidadãos livres e informados tornavam-se progressivamente isolados, substituindo vínculos sociais por contratos e identidades de consumo.

Foi nesse contexto que o comunitarismo surgiu como tentativa de restaurar a dimensão moral e coletiva da política. A filosofia buscava reconciliar dois polos em tensão: a autonomia individual e a responsabilidade compartilhada.

A proposta era simples e ambiciosa ao mesmo tempo: uma sociedade de cidadãos livres, mas conscientes de que a liberdade só existe dentro de uma comunidade.

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A reação ao individualismo liberal

O comunitarismo nasceu nos debates acadêmicos das décadas de 1970 e 1980, quando o liberalismo anglo-saxão se tornava a ideologia dominante.

A referência central era John Rawls, cuja obra Uma Teoria da Justiça propunha que princípios éticos universais poderiam ser definidos por indivíduos racionais, isolados de seus contextos culturais e históricos.

Comunitarismo
Foto John Rawls – Um dos pensadores comunitaristas

Para filósofos como Michael Sandel, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e Amitai Etzioni, essa visão ignorava algo fundamental: ninguém é formado no vazio.

Sandel chamaria esse ser humano desenraizado de “self desencarnado”. A crítica era direta: uma sociedade que enxerga seus cidadãos como unidades autônomas corre o risco de dissolver o senso de pertencimento que dá legitimidade à própria democracia.

MacIntyre foi além. Em Depois da Virtude (1981), descreveu a modernidade como uma era moralmente fragmentada, em que a perda de tradições compartilhadas levou ao relativismo ético e à solidão moral.

Já Charles Taylor insistia na importância do reconhecimento mútuo: as pessoas constroem suas identidades não sozinhas, mas em diálogo com as comunidades a que pertencem.

Em comum, esses pensadores apontavam para um mesmo diagnóstico: o individualismo liberal havia criado sociedades economicamente prósperas, mas espiritualmente exaustas.

Liberdade com pertencimento

O comunitarismo não é uma negação da liberdade individual, e sim uma tentativa de redefini-la. A filosofia propõe que o ser humano é livre por meio da comunidade, e não apesar dela.

Ao contrário do liberalismo, que coloca a autonomia como ponto de partida, o comunitarismo entende que a liberdade precisa de laços morais, cultura compartilhada e instituições capazes de promover o bem comum.

Três ideias sustentam essa concepção:

  • Pertencimento: o indivíduo se realiza dentro de um contexto coletivo, e não em oposição a ele;
  • Responsabilidade mútua: a cidadania implica deveres compartilhados e não apenas direitos individuais;
  • Bem comum: o interesse público deve orientar a política, equilibrando mérito, solidariedade e coesão social.

Esses princípios dariam origem a políticas voltadas à coesão comunitária: educação cívica, participação local, economia solidária e regeneração de laços urbanos.

Mas o avanço do neoliberalismo e a ascensão da cultura do desempenho empurraram essas ideias para a periferia do debate político.

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A passagem pela política: da filosofia à Terceira Via

Nos anos 1990, o comunitarismo ganhou espaço nas plataformas políticas da chamada “Terceira Via”.

Líderes como Tony Blair no Reino Unido e Bill Clinton nos Estados Unidos tentaram incorporar seu discurso, prometendo conciliar eficiência de mercado com solidariedade social. O resultado, porém, foi mais simbólico do que estrutural.

A “sociedade de responsabilidade compartilhada” virou, na prática, um apelo à responsabilidade individual. O cidadão passou a ser visto como gestor de si mesmo, enquanto o Estado se retirava de funções essenciais.

A retórica comunitarista, que nascia para reequilibrar liberdade e pertencimento, acabou servindo para justificar novas formas de austeridade e moralização da pobreza.

A filosofia perdeu densidade. Restou uma ideia de comunidade sem projeto, reduzida a slogans de civismo e voluntariado.

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A era da solidão democrática

A virada do século trouxe novos paradoxos. A globalização e o avanço da tecnologia conectaram sociedades inteiras, mas ampliaram o sentimento de isolamento.

A comunicação instantânea substituiu o diálogo; a opinião substituiu o debate. O espaço público, antes mediado por instituições, fragmentou-se em bolhas digitais.

Enquanto isso, o trabalho se tornou precário, as cidades se expandiram sem vínculos territoriais e o Estado perdeu parte da capacidade de mediar conflitos. A promessa liberal de autonomia plena se converteu em exaustão individual.

O que o comunitarismo antecipou — a dissolução do tecido social — se tornou realidade cotidiana. Cidadãos informados e conectados vivem mais sozinhos, menos engajados e mais céticos diante das instituições democráticas.

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As raízes comunitárias brasileiras

O Brasil nunca teve um debate teórico robusto sobre o comunitarismo, mas sua prática social revela experiências que dialogam com o conceito.

As Comunidades Eclesiais de Base, o cooperativismo rural, o orçamento participativo e a economia solidária expressam, em graus diferentes, a ideia de pertencimento e corresponsabilidade.

Essas iniciativas nascem, quase sempre, onde o Estado falha — nas periferias urbanas, nas pequenas cidades e nos movimentos populares.

Elas mostram que o comunitarismo não precisa de um nome para existir: emerge do cotidiano de quem organiza uma horta coletiva, cuida do vizinho, ou participa de uma cooperativa de crédito.

Mas, sem políticas públicas que transformem essas experiências em modelo, o país permanece dependente da solidariedade espontânea — um comunitarismo informal, frágil e intermitente.

Uma filosofia para o século XXI

O debate comunitarista volta a ganhar relevância em meio à crise de pertencimento das democracias contemporâneas. Fenômenos como polarização, desinformação e desconfiança institucional são sintomas de sociedades que perderam o senso de bem comum.

Ao mesmo tempo, cresce o interesse por novas formas de economia do cuidado, de cidadania local e de regeneração comunitária — todos ecos tardios de um pensamento que tentou corrigir o excesso do individualismo.

O comunitarismo pode oferecer um vocabulário para repensar a democracia na era digital. Não como retorno a tradições fechadas, mas como redescoberta do laço social: a ideia de que o futuro político depende de reconstruir o sentimento de pertencimento.

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O elo perdido da democracia moderna

Entre o liberalismo que promete autonomia e o autoritarismo que impõe unidade, o comunitarismo permanece como um caminho inacabado.

Sua força está menos nas respostas que oferece e mais nas perguntas que recoloca: o que significa viver em sociedade? Como equilibrar liberdade e dever? Como restaurar o bem comum sem sufocar a diversidade?

Nas democracias contemporâneas, onde o cidadão se tornou espectador e o engajamento se confunde com opinião, essas questões voltam a soar urgentes.

O comunitarismo não foi esquecido por acaso — foi deixado para trás no momento em que a política passou a confundir autonomia com isolamento.

Hoje, quando a solidão se tornou um fenômeno coletivo, talvez essa filosofia do “nós” volte a ser o ponto de partida que a democracia moderna insiste em adiar.

José Carlos Sanchez Jr.

José Carlos Sanchez Jr.

Jornalista com foco em economia e sociedade, dedica-se a investigar como decisões econômicas, políticas e sociais se entrelaçam na construção de um Estado de bem-estar social no Brasil.

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